Toda comunicação humana é, essencialmente, argumentativa. Para realizá-la, utilizamos elementos linguísticos e estratégias discursivas com o propósito de tentar garantir que o sentido transmitido seja aquele que desejamos, ao mesmo tempo que precisamos lidar com fatores externos à língua e intrínsecos à existência em sociedade. Antecipação, conhecimento de mundo e possíveis entornos comunicacionais podem ser a diferença entre a compreensão e a confusão.
Alguns sentidos são mais possíveis que os outros, a depender do contexto, enunciação e escolha de palavras. O intuito de influenciar a percepção de quem ouve pode ser reconhecido em como quem argumenta constrói essas possibilidades em meio ao jogo de antecipações, negociações, interpretações presentes nas interações humanas.
Esse fenômeno é estudado pelo pesquisador Hális Alves do Nascimento França, que defendeu seu doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (Ppgel), do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA/UFRN), na área de Linguística Teórica e Descritiva. Ele enxerga o papel da argumentação na construção dos sentidos de um texto através de uma perspectiva predominantemente linguística, procurando desenvolver uma ferramenta teórica para sua análise e descrição.
Mestre em Direito, escolheu estudar um gênero textual que não apenas conhecia bem, mas que foi responsável por seu interesse inicial pela argumentação: o jurídico. Durante a realização do seu mestrado na Universidade de Kobe, no Japão, investigou a eficácia dos acordos internacionais de um ponto de vista do direito internacional. Ali, percebeu que ela depende, em grande parte, da forma como os compromissos assumidos são expressos em termos linguísticos.
Ao analisar a linguagem por trás de um acordo internacional, é possível ter um vislumbre dos diversos interesses em jogo durante uma negociação, a partir das especificidades colocadas no papel – a rigidez dos comprometimentos é determinada pela sua expressão linguística. “Foi dessa maneira que percebi o quanto o processo de interpretação textual que trazia esse entendimento podia se relacionar também a um processo de argumentação. Nesse caso, para chegar a determinados sentidos, era preciso argumentar como se chegou até eles,” explica Hális.
Em sua tese de doutorado, intitulada Orientação Argumentativa em Acordos Multilaterais Ambientais, ele continuou a investigação do seu objeto de estudo anterior, dessa vez, sob uma ótica linguística e não jurídica. Tendo a Convenção-Quadro das Nações Unidas para Mudança do Clima como amostra central do gênero acordo multilateral ambiental, ele analisou seu contexto, sujeitos, objetivos e meios, percebendo mais uma vez como esses elementos afetam o produto final e focando em um segmento específico do documento: o Artigo 4, que trata mais explicitamente das obrigações assumidas pelos países, para a construção do corpus da pesquisa.
“Seu texto é produzido mediante uma série de negociações entre as partes interessadas [os países], tendo em vista a criação de um conjunto de normas com um objetivo específico,” descreve Hális. “Há diversos interesses em jogo durante o processo de negociação, de forma que aquelas partes que não desejarem se comprometer muito estritamente com as obrigações procurarão flexibilizar a linguagem desses compromissos”. Ele assemelha tais características de construção de sentido através da argumentação às produções textuais legislativas e contratuais.
“Dessa forma, a convenção se emprestou bem à metodologia qualitativa e documental escolhida para o desenvolvimento de uma ferramenta de análise do texto”, destaca o pesquisador. Seu uso possibilitou a elaboração de uma ferramenta com foco no papel da argumentação no estabelecimento de sentidos, por meio da identificação, descrição e análise das marcas discursivas que “indicam a orientação argumentativa de um determinado texto”.
Ao aplicá-la à Convenção, foi possível visualizar quais marcadores discursivos foram mais preponderantes na análise da orientação argumentativa do texto, categorizando-os. Além disso, a ferramenta ainda gerou inovações em termos de configuração e visualização da orientação argumentativa no que diz respeito à análise textual.
Para chegar a ela, Hális utilizou como base os métodos da Análise Textual dos Discursos, de Jean-Michel Adam; da teoria dos atos de discurso, pragmática do discurso e lógica ilocucionária de John Searle e Daniel Vanderveken; além da análise e avaliação do discurso argumentativo, a partir da teoria pragmadialética de argumentação de Frans van Eemeren. Já para estudar as especificidades do discurso jurídico, apoiou-se na pragmática do discurso de Neil MacCormick e Robert Summers, e ainda de Eveline Feteris e Harm Kloosterhuis.
A partir daí, ele procurou fazer articulações pouco exploradas entre as teorias da linguística do texto, da argumentação e da interpretação jurídica, “sugerindo alguns caminhos para a análise do discurso jurídico que colocam a argumentação como elemento central do estabelecimento dos sentidos do texto”. É um avanço que propõe uma maneira de se trabalhar a orientação argumentativa como categoria de análise textual-discursiva, de forma aprofundada e criteriosa.
A pesquisa permite também uma investigação dos acordos internacionais de uma perspectiva predominantemente linguística, não muito trabalhada no contexto dos gêneros discursivos. É uma proposta que, junto a um diálogo com os estudos do direito e da argumentação, possibilita compreender como se estabelecem determinados sentidos e seu impacto na compreensão e análise do texto jurídico.
Aperfeiçoando a ferramenta teórica de análise de texto que propôs, Hális espera capacitá-la para utilização em outros gêneros discursivos, além de viabilizá-la para aplicações computacionais – como softwares de mineração e análises automatizadas de textos. Recém licenciado em Letras (Inglês) pela UFRN, curso que realizou de maneira concomitante ao seu doutorado, ele enxerga também uma aplicação no ensino de línguas estrangeiras, focando no desenvolvimento de abordagens argumentativas de aprendizagem.
“É importante saber como a argumentação interfere nos sentidos que damos ao texto porque a gente entende melhor o papel da razão na nossa linguagem, e isso pode abrir espaço para discussões em várias outras áreas, como no processamento de linguagem natural e nas ciências cognitivas,” conclui.
Fonte: Agecom/UFRN