Bicicleta

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O burro os observava capinando, enquanto mastigava seu moio. Quarenta graus à sombra — num fim de tarde! Junto dele, uma velha carroceria e a bicicleta, igualmente velha, sem pneus e enferrujada. É que tinham dado aos dois garotos. E os dois saiam de porta em porta oferecendo seus serviços, pra poder ajeitar aquele cambão. Só com o que catavam nas ruas não dava. E eles queriam ajeitar logo. Uma mosca veio molestar o burro, que a espantou num simples abanar de rabo e pacientemente continuou a mastigar seu capim, deixando parte cair de sua boca, enquanto observava os meninos ao sol.

Um cuidava da enxada, maior do que ele, e outro usava um ciscador, também maior que ele, e vinha trazendo mato e restos de lixo, cobrindo o que seria o espaço de algumas quadras, se ali houvesse um amontoado de residências e não um conjunto novo, desses em que há poucas moradias e muita propaganda.

Os meninos tiveram sorte. De doze residências em que eles pararam e bateram palmas oferecendo seus serviços para limpar a frente dos terrenos, uma quis. Era de um casal novo. Uma grande e bonita casa. O sujeito tinha um carro desses novos na garagem. Recebeu os dois com todo sorriso e cordialidade. Disse que ia à praia com a mulher e a filhinha, mas que os meninos podiam, sim, limpar a frente de sua casa. Quando chegasse, acertaria com eles. Talvez fosse aquela recepção tão generosa de um dia de nãos que os fizesse nem sentir o calor abrasador, o suor lavando seus rostos.

Ninguém lembrou de pedir água. De deixar ao menos uma garrafa d’água. E agora os dois com sede. E ainda faltava muito. Descansaram cada um na sua ferramenta de trabalho. As mão pequenas e calejadas limpando o suor que salgava olhos e bocas secas, deixando na face de cada um a sujeira da palma da mão. O sol inclemente. O burro zunindo. Mas havia a bicicleta. Não iam desistir da bicicleta. Trataram os dois de colocar suas ferramentas sobre os ombros e ir bater em outras residências atrás de água.

O nó dos pescoços, quando a água descia, parecia o gogó de uma galinha ao cacarejar. E babavam no copo enquanto bebiam. Parecia até mesmo, em dado momento, que engoliriam o próprio copo. Um litro de água retirada da torneira. Tomada num copo de alumínio. Os dois agradeceram. Disseram que estavam capinando um terreno a fim de juntar dinheiro para mandar ajeitar a bicicleta que estava sobre a carroça parada na outra rua. Não, a pessoa que lhes dera água não tinha dinheiro para ajudá-los com a bicicleta. Mesmo assim agradeceram e voltaram ao serviço.

Faltava pouco para eles terminarem. Também imaginavam que faltava pouco para o homem chegar e pagar aos dois. Começaram a capinar pela manhã e já era fim de tarde. Nem almoçar tinham ido. Dividiram um pão, metade pra cada um, que conseguiram mendigar. Talvez, com o que iam conseguir hoje, pudessem montar a bicicleta… Ao menos um pneu… Será? Indagava um ao outro. Chegaram! O casal chegou da praia! Os três bronzeados— o homem, a mulher e a filhinha. O portão abriu no automático. Entraram direto. Os meninos foram lá. Apertaram a campainha. O dono da casa saiu. Ah, é vocês? Amor, pega lá aquele pacote. Caramba, ficou bom, garotos, ficou muito bom! Vou chamar vocês de novo da próxima vez pra limpar. Pronto, tá aqui. Meio quilo de feijão. Tá meio velho, mas não tá estragado não. É porque minha mulher não gosta de comer coisa velha, entendem? Bom, tchau, até mais e boa sorte pra vocês!

Os garotos montaram na carroça e deram partida no animal, levando a bicicleta sem pneus.

Amanhã será outro dia.

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