Desde a descoberta do novo coronavírus, o mundo enfrenta uma crise sanitária sem precedentes. A doença com alta letalidade impôs o isolamento da sociedade, desafiando a ciência e os métodos de enfrentamento dela, como o sistema de saúde e as políticas públicas. Atento ao cenário da pandemia, o Grupo de Estudo e Pesquisa na Atenção Primária à Saúde (GEAPS/UFRN) realizou uma pesquisa que rendeu a publicação de uma coletânea de artigos científicos que apresentam o panorama da covid-19 na Atenção Primária à Saúde (APS) e o seu impacto na cobertura epidemiológica de cidades nordestinas.
O compilado de três artigos, publicados na Plos One, revista científica de acesso livre muito respeitada internacionalmente, descreve detalhes dos primeiros momentos da pandemia da covid-19 por meio de dados que norteiam as conclusões necessárias para se mitigar o momento que o mundo atravessa. Os resultados encontrados nas pesquisas destacam as dificuldades do acesso ao sistema de saúde, além da importância do isolamento nos momentos iniciais da disseminação do vírus que, primeiramente, propagou-se entre pessoas de maior nível social e com maior poder de deslocamento, seja ele local ou internacionalmente.
No artigo, intitulado Disseminação da COVID-19 em cidades do interior do Nordeste brasileiro, foi possível observar que as grandes cidades foram afetadas primeiro pela disseminação do vírus. O estudo teve como objetivo avaliar a evolução dos casos de covid-19 na população do interior da região Nordeste do Brasil, condicionada por fatores socioeconômicos e ambientais que geram vulnerabilidade.
O estudo mostrou que, nas 20 maiores cidades do interior do Nordeste, foram diagnosticados 6.117 casos de covid-19, uma média diária que varia de 32 a 1.126 casos, referentes à 21ª semana epidemiológica de 2020. As tendências de casos mostraram que a covid-19 se espalha de forma desigual nas cidades investigadas.
Os dados coletados consideraram o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o coeficiente de Gini (que mede o grau de concentração de renda de um determinado grupo) e a taxa de pobreza. Outras variáveis independentes foram coletadas no banco de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e serviram como indicador para conclusão dos resultados.
Nos resultados obtidos, as tendências de casos mostraram que o covid-19 se espalha de forma desigual nas cidades investigadas. Essa distinção pode ser percebida de acordo com o IDH e a desigualdade social, demonstrando que cidades com maior IDH apresentaram disseminação mais rápida da covid-19 do que aquelas com IDH menor. Porém, os municípios com alto IDH, mas com menor desigualdade social, tiveram taxas mais baixas de casos confirmados de covid-19, é o caso, por exemplo, de Caruaru, em Pernambuco, e Barreiras, na Bahia. Ou seja, os indicadores avaliados apontam não só a disseminação, mas também o diagnóstico mais rápido entre os municípios mais desenvolvidos.
Os pesquisadores observaram que, como as cidades de maior IDH apresentam maior Produto Interno Bruto (PIB) e maior renda per capita, o que confere maior poder aquisitivo, estas geram maior mobilidade para viagens e dinamismo de bens e serviços. Por outro lado, essas cidades podem ter mais acesso a testes rápidos e exames confirmatórios da covid-19 devido ao aumento da arrecadação de impostos.
O artigo ainda relata que o serviço de saúde de municípios de médio a grandes portes com maiores indicadores socioeconômicos tende a se sobrecarregar mais rapidamente com a disseminação do vírus. No entanto, a desigualdade e a elevada pobreza são condições ideais para o colapso dos serviços de saúde. Por isso, os pesquisadores indicam que o cuidado do indivíduo com a covid-19 na região Nordeste deve ser considerado tomando como base os pontos de vista econômico, social e ambiental.
A pesquisa que gerou os três artigos foi coordenada pelo professor Marcello Guedes, coordenador do GEAPS e atual chefe do Departamento de Fisioterapia (DFST/UFRN), em parceria com os pesquisadores Geronimo Bouzas e Thais Guedes, da Faculdade de Ciências da Saúde (FACISA/UFRN), Johnnatas Lopes, da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF/BA), Diego Araújo, da Faculdade de Ciências da Saúde (UNIFACISA/PB), Sanderson Assis (UNINASSAU/RN) e Ângelo Roncali, do Departamento de Odontologia da UFRN.
Phd em saúde coletiva, Marcello destaca a importância das pesquisas para o contexto urgente de mudanças no sistema de saúde do País. “Essa coletânea de artigos traz informações relevantes para que gestores públicos, o governo e iniciativa privada possam elaborar políticas públicas e ações mais eficazes no combate a esta pandemia e a outras epidemias que possam eventualmente surgir”, reforça.
Pobres foram mais afetados
No artigo intitulado Covid-19 em cidades brasileiras: impacto dos determinantes sociais, cobertura e qualidade da atenção primária à saúde, os pesquisadores concluíram que o maior número de mortes ocorreram entre os mais pobres, proporcionalmente aos mais ricos, ainda que os mais ricos tenham sido afetados primeiro. Segundo os resultados, os serviços de Atenção Primária à Saúde de qualidade repercutiram positivamente na redução de casos da covid-19.
Nesse estudo, foram usados como parâmetros os casos de covid-19 confirmados por exames laboratoriais, clínico, clínico-epidemiológico e imagem clínico por 100 mil habitantes em todas as capitais brasileiras até a 26ª semana epidemiológica. Os dados de desfecho foram extraídos do banco de dados Painel Covid-19, alimentado pela Vigilância Sanitária e disponibilizado pelo Departamento de Informática do sistema único de saúde (SUS).
Foram avaliados indicadores de cobertura e qualidade da APS e Estratégia Saúde da Família (ESF), indicadores demográficos e socioeconômicos. As coberturas da APS e da ESF foram coletadas no DATASUS. As condições socioeconômicas foram medidas por meio do produto interno bruto (PIB), do IDH e do Gini.
Os achados do artigo apontaram que, ao estratificar a cobertura da ESF, os municípios com maior cobertura tiveram sua população menos acometida pelos casos da covid-19, principalmente aqueles que foram melhor avaliados no Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ). Ou seja, a hipótese de que as ações de prevenção desenvolvidas em áreas melhor atendidas pelos serviços de APS é uma estratégia de extrema relevância para minimizar o impacto desta pandemia, podendo assim atender aos demais níveis e serviços de atenção à saúde.
Vale destacar os resultados acerca dos dados coletados sobre a Restrição à Proteção Social (RSP), indicador que retrata a ausência do Estado para proteger os cidadãos que não estão inseridos nos meios de produção, o que aumenta sua vulnerabilidade. Assim, municípios com maior proporção desses indivíduos apresentaram mais casos de covid-19. No entanto, esses efeitos são minimizados quando a cobertura da APS é expandida.
Outra questão relevante detalhada no artigo relacionada às desigualdades sociais é que a prevalência de doenças crônicas como diabetes, hipertensão e obesidade, bem como a dificuldade de seu manejo é maior nas populações mais pobres da sociedade brasileira. Essas condições cardiovasculares são um dos principais fatores de risco para piores desfechos e mortalidade devido a covid-19.
Isolamento social
No artigo Atenção primária à saúde e isolamento social contra COVID-19 no Nordeste do Brasil: estudo ecológico de série temporal, foi possível concluir que houve impacto positivo no momento agudo da pandemia. Usando a localização dos celulares, os pesquisadores perceberam que as cidades onde as pessoas ficaram mais tempo em casa tiveram menos casos e óbitos por covid-19 no início da pandemia. O índice de isolamento social foi extraído de um sistema de monitoramento que calcula o percentual da população dos municípios que seguem recomendações de isolamento.
O público-alvo da pesquisa foi a população residente nas principais cidades nordestinas, tendo em vista a maior concentração de casos nessas cidades e por serem, geralmente, referência em economia e serviços de saúde para outros municípios do estado. A análise aponta que a extensão da cobertura da APS nessas cidades, em conjunto com as ações sociais de distanciamentos, estão associadas a menos casos e óbitos até a 20ª semana epidemiológica.
A pesquisa concluiu também que a adesão ao isolamento social na população estudada foi considerada baixa. Mesmo assim, houve uma correlação inversa e significativa entre o isolamento social, os casos diagnosticados e óbitos pelo covid-19. Consequentemente, uma maior adesão da população ao isolamento social levaria a efeitos mais fortes na redução do contágio. Os pesquisadores chegaram ao resultado de que as medidas de restrição social, apesar de parecerem mais eficazes nos epicentros da doença, também surtem efeitos em cidades com menos casos, minimizando a propagação da epidemia.
Outro ponto analisado foi o desafio de preservar o distanciamento social em uma área de maior concentração de pessoas para não sobrecarregar o sistema de saúde. Como a covid-19 é transmitida principalmente pelas vias aéreas ou por contato com gotículas respiratórias, uma alta concentração populacional no mesmo local facilitaria a transmissão. As cidades com maior densidade demográfica demonstradas no estudo, Fortaleza (CE) e Recife (PE), apresentaram maior número de casos e óbitos, além de estarem em situação crítica para a gestão do sistema de saúde devido à maior disseminação da doença e elevado número de óbitos.
Um dos artigos relata ainda que, apesar das cidades serem bastante povoadas, outras ações profiláticas para a covid-19 são necessárias para reduzir a crise do sistema de saúde, como reforço da APS e aumento do número de leitos hospitalares, postos de higiene pública, distribuição de equipamentos de proteção individual, entre outros. Os autores enfatizaram nesse artigo que a APS e o acesso a ela são essenciais para a evolução das condições de saúde de uma população, incluindo as doenças transmissíveis. Isso porque, a infecção pela covid-19 é uma condição sensível à APS por amenizar a pressão sobre os serviços hospitalares, limitada principalmente em regiões de vulnerabilidade socioeconômica.
Fonte: Agecom/UFRN