Anal-retentiva

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Quero o divórcio.

Foi a primeira coisa que escutou naquela manhã, assim, sem rodeios, depois do tilintar das xícaras e dos talheres. Apenas olhou a hora e continuou a ler o jornal. Como se aquilo não lhe pertencesse. Como se, de repente, fosse uma bobagem. Como se, de repente, já estivesse mesmo esperando.

Você não diz nada? Tá vendo? Tá vendo? É por isso que deixei de gostar de você!

Ele, de cabeça baixa, continuava a ler as notícias do dia. Ela, percebendo que não tiraria muita coisa dali, sentindo-se constrangida, infantil, pela passividade de alguém com quem conviveu por anos, que acabava de escutar algo como aquilo e, mesmo assim, agia com indiferença, decidiu ir à carga.

E sabe o que mais? Eu te traí! É isso mesmo que você escutou, TRAÍ! POR MUITOS ANOS! E NÃO FOI SÓ COM UM NÃO. FOI COM MUITOS, MUITOS! INCLUSIVE COM SEUS AMIGOS! MUITOS DELES ME COMERAM! NA TUA CAMA, SEU CORNO!

Ele se levantou sem fazer muito ruído, sem arrastar a cadeira, como sempre fazia, aliás. Foi até o banheiro e começou a escovar os dentes. Ela continuou dizendo coisas às suas costas.

Meu Deus! Tão preocupado com a sujeira na sala, no tapete, com os fios de cabelo que caiam no sofá, enquanto não conseguia perceber as carências da própria mulher? Foi preciso outros virem de fora e lhe dar valor pra se sentir outra vez amada, desejada! A culpa é sua, Luiz Roberto, sua! SERÁ QUE VOCÊ É GAY E EU NUNCA PERCEBI? UMA BICHA? Ele, depois de olhar outra vez o relógio, começou a pentear o cabelo, assentando pacientemente fio a fio, em frente ao espelho.

ESTOU FALANDO COM VOCÊ! SEU CORNO! SUA BICHA! Pegou uma tesoura e começou a rasgar cortinas e estofados. Ameaçou-se. Ficou com os joelhos dobrados no chão. Pôs-se a chorar.

E o Luisinho, o filho que você pensa que é seu, não é seu… É do Antônio Carlos, seu chefe! E agora? Não tem nada a me dizer? Falava entre soluços.

Ajustou o paletó, olhou uma última vez o relógio e disse: Tenho. Como você quer suas flores?

Flores… Como assim? Depois de tudo o que falei, você vai me dar flores?

Claro, como você quer?

Que brincadeira é essa?

Não estou brincando. Vou trabalhar agora e vou comprar flores pra você quando estiver voltando.

Por quê?

Porque você vai morrer. Na verdade, pelos meus cálculos, daqui a alguns segundos.

Como… Como… Antes que tivesse terminado a frase, ela colocou as mãos no pescoço.

Mas que droga, eu me enganei! Acho que coloquei uma dose um pouquinho maior… Acho que foi isso. Deve ter sido isso. Coloquei algo em sua bebida. E na do seu filho também. E, sim, tudo o que você me contou eu já sabia, sempre soube. Mas eu te amei — embora você não acredite nisso — eu te amei. Falava isso enquanto ela estrebuchava.

Não adianta agora falar que essa minha obsessão pelas coisas organizadas, mania que você tanto detestava, tinha a ver com a opressão que sofri da minha mãe e meu pai me obrigando a usar o vaso sanitário precocemente para se verem livres do trabalho e dos gastos com fraldas. Eu levaria horas explicando o que meu terapeuta vem me dizendo há um tempo, tempo que agora você não dispõe. Sim, eu tenho problemas, do jeito que você também. Essa sua mania de sempre querer atenção. Essa sua carência, que por mais que eu fizesse nunca ficava satisfeita… Jogar a culpa nos outros é sempre mais fácil.

Acho que você disse a sua amiga que pensava em se matar, que não aguentava mais viver comigo, não foi? Eu vi no seu celular. Você nem se preocupou em colocar uma senha. Às vezes ser metódico é bom, sabe? Me garantiu um álibi. Então eu só fiz o que você queria. Por amor? Não sei. Talvez sim, talvez não — Um muco escorria da boca da mulher quando tentava falar. Colava-se ao lado do rosto encostado ao chão. Os olhos quase revirados. Mãos e pés tortos.

Você nem disse, mas vou trazer flores brancas e amarelas. Vão combinar mais com você. Tchau. Senão eu vou me atrasar. Não se preocupe. Uma ou duas lágrimas irei derramar por você. Gosto das coisas perfeitas. Você me conhece.

 

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