Cachorro

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Você não tem noção, você não sabe, até que esteja ali, vivendo a coisa na prática. Até abrir pele, músculos, até chegar nos ossos, o médico vai sentir aquele friozinho na barriga, e só depois te enfia uma agulha como quem costura uma calça furada e comenta sobre o jogo que viu de ontem à noite. Esqueça isso, garoto, nenhuma faculdade te prepara pra nada nessa vida, até que você chega em uma casa e vê três, quatro, cinco crianças — e dois adultos—sem nada na geladeira, nada no fogão, na despensa, em canto algum. Daí você começa a se acostumar, faz como o médico, querendo saber o resultado do jogo de ontem à noite, dizia o motorista ao estagiário do Serviço Social que acompanhava o profissional numa visita. Tô mentindo, doutor? Também não é bem assim, respondeu sorrindo o profissional em direção ao motorista. Estavam os três indo atender uma denúncia de maus tratos e abandono de incapaz.

O carro balançava na rua,toda tomada por lixo e valas a céu aberto.Grupos nas esquinas observavam com curiosidade o carro com a marca da Prefeitura. Crianças metiam seus pés na lama. Corriam nuas e descalças. Outras, descabeladas, seguravam suas bonecas sem cabeças, carrinhos sem rodas.Adolescentes com os bonés baixos sobre a vista rodavam seus cigarros de maconha, enquanto curtiam o som que saía de duas caixas grandesligadas por um fio que vinha de dentro de casa e chegava até a rua.

Porra, doutor, que lugar é esse? Era pra gente ter vindo com escolta, disse o motorista. Porque escolta? Não viemos fazer nada demais. Viemos apenas averiguar uma denúncia. Sei, sei. Ninguém sabe nem como é esse “cidadão”, como ele vai receber essa tal “denúncia” que fizeram dele. Não se preocupe, disse o profissional. Tentou ainda justificar a vida daquelas pessoas pelo meio em que viviam, que na verdade era o meio que fazia elas serem quem eram— papo para o qual o motorista não deu ouvidos.

É aqui, disse de repente o motorista. O estagiário já havia feito algumas visitas, essa não era a primeira. Mas o friozinho na barriga permanecia. Chegaram até lá, naquela vila, mas não sem dificuldades. Só havia o nome do bairro e da rua, que era mais conhecida pelo apelido Baixa do Capeta. Os números das casas, as que tinham números, eram em sua maioria desencontrados. Só souberam onde ficava exatamente a casa que procuravam por conta de seu ilustre morador: Tonho Cachaça. Ideia do motorista. Ninguém ali conhecia Antônio Etevaldo Viana, como perguntava o assistente social.

A casa ficava no final de um longo corredor estreito e imundo cheio de varais. Transitado por mulheres e crianças e gatos e baratas. Uma moradora os levou até lá. É aqui. Bateram palmas. Ninguém. Bateram palmas de novo. Só latidos de cão, que vinham de dentro. Escutou? Perguntou o motorista. O quê? Respondeu o estagiário. Ó, de novo! Coloca aí o ouvido aqui na porta! Escutei não…Coloca aí, coloca aí… É tipo uns grunhidos estranhos…É, mas está fechada, e não podemos fazer nada, temos que ir. Quê, doutor? Com criança, cê é doido! Não podemos fazer nada, não somos a polícia, não temos mandat…

O motorista deu um chute na porta de madeira, que arrebentou sem maiores dificuldades. No mesmo momento, um ranço feriu suas narinas.

O estagiário notou que além de uma mesa de madeira, uma cadeira, um fogão de duas bocas, um armário sujo caindo aos pedaços, uma geladeira amarrada por uma corda, não havia nada nem ninguém ali. Não satisfeito, o motorista foi conferir o armário de condimentos. E só então o estagiário percebeu que estava enganado: havia as baratas.

Sidney, você está louco, homem? Sabe que a gente pode se prejudicar com isso que você acabou de fazer? Que é uma infração e…

Porra nenhuma, doutor, e quem se importa com essa gente?

Escutaram os grunhidos, que vinham lá do quarto, e os latidos. Agora mais alto. A porta estava escorada. Os três correram até lá. Outros moradores, depois que a porta veio abaixo, apareceram para saber também o que estava acontecendo na casa do Tonho Cachaça.

Uma criança, não devia ter mais do que dois anos, deitada num colchão rasgado e sujo de suas fezes, ao lado de um cão. Estava amarrada pelo tornozelo. Tanto latia o cão quanto a criança para os que estavam ali os observando.

“Esquenta não, garoto. É isso o que eu digo. Uma hora você se acostuma.”

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