Coração de mãe

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Um pouco cansada, talvez, não via a hora de se meter embaixo do chuveiro quando chegasse em casa. Uma canção popular surgiria de súbito, evocada por uma lembrança de alguém, ou porque fosse dessas canções que não nos saem da cabeça e, passadas algumas semanas, logo esquecemos. Mas o que não se pode esquecer é que todo mundo tem uma mãe. Alguém que se preocupa com a gente. Por isso ligaria para ela assim que chegasse. Já disse, a senhora se preocupa demais comigo,ouvia sempre da filha. Eu sei, filha, mas coração de mãe nunca se engana. Meu celular descarregou, foi só isso, mãe, respondia. Mas não era o caso dos outros que estavam ali, tirando fotos suas. Eles só precisavam do melhor ângulo.

Talvez fosse tímida, daí a dificuldade em posar. O problema eram seus olhos, que se mantinham no mesmo lugar. Mas não importa. Aquilo já estava fazendo o maior sucesso. A única coisa que se precisa é estar no lugar certo, na hora certa. Mesmo com algumas celulites, sabia que suas pernas não eram das mais feias. Mas nunca imaginou também que fossem de parar o trânsito.

Ah, mãe, é só um paquera, não tem nada demais. Assim ela se referia ao homem pelo qual estava perdidamente apaixonada. O riso congelado no rosto pálido, como quando tentamos disfarçar o nervoso, a falta dos dentes da frente, encobertos em parte por fios de seus cabelos, que dançavam ao sabor do vento, que entravam no nariz, olhos e boca. Não sabiam seu nome, mas todos comentavam. Celulares não paravam. Milhares de compartilhamentos e curtidas. Multidão se aglomerando enquanto a polícia os afastava a um canto. A imprensa também está a caminho. Mais um furo de reportagem. O que sua mãe diria se soubesse que ele era casado? Pai de uma filha? Vida de celebridade é assim mesmo. Um dia você volta do trabalho para casa. Ninguém te dava a mínima. As cabeças nunca mudavam em sua direção. Até que em questões de segundos, sem você menos esperar, sua vida muda. E você muda a vida dos outros a sua volta. Vem pra cá, é aqui, é aqui! Ela tá aqui! Chama o pessoal pra ver!

Claro, mãe, ando sempre com ele aqui. Referia-se ao terço que sua mãe lhe deu para se proteger – embora não fosse mais às missas aos domingos, porque, por mais que você queira ser discreto, se manter no anonimato, eles o atacam como aves de rapina. Dão conta de tudo o que é seu, o que estava vestindo, suas vísceras. Como se uma celebridade não fosse também, um dia, humana. Ela simplesmente apareceu na minha frente, nós nos chocamos, dizia um homem nervoso às câmeras de TV. Quanto tempo até que ela saia dali de onde está provocando aquela confusão? Com pessoas colocando suas cabeças para fora das janelas dos ônibus, também com seus celulares na mão? Quanto tempo até que Paris Hilton decida sair do banheiro de um posto de gasolina, depois de fazer xixi? Quanto tempo até que feche aquela sua boca sem dentes, olhando para nós? Por pudor, alguém veio e lançou sobre ela seu casaco. Talvez ela até o agradecesse, se pudesse – o que gerou a insatisfação de alguns, porém, ninguém arredava o pé.

Seus sapatos estavam a distância, como quando bebemos e saímos descalços e não lembramos onde deixamos. A bolsa com seus documentos, seu batom, o terço, o celular que tocava, mas que alguém desligou. Parte de sua massa encefálica e seus dentes estavam espalhados pelo asfalto, que o caminhão arrastou, bem como o resto de seus membros, braços e pernas.

A equipe médica esperava o Corpo de Bombeiros para liberar o que sobrou, preso entre o eixo e a roda.

Não vou ligar mais. Prometi a ela. Deve tá presa em algum lugar, dizia a mãe para si.

Estava certa. Coração de mãe nunca se engana.

Imagem: Reprodução

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