A Cela

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Talvez fosse por isso que gostasse tanto de novelas: “João Augusto” parecia nome de galã das sete. Havia até quem dissesse que detudofazia um drama em sua vida. Nem mesmo o fato de estar cansado de um dia exaustivo no trabalho foi suficiente para tirá-lo da frente da TV, quando começou Loucuras do Coração. A novela abriu no rosto de Fernanda Albuquerque– sempre Fernanda– naquele seu rosto cheio de ódio, disposta a tudo para acabar com o amor de Paulo César e Amanda. Dessa vez, causou o maior vexame na frente dos convidados durante a festa, para distraí-los enquanto seguia com seu plano diabólico.

“Amor, porque você não vem pra cama?” Irene sabia. Era inútil. Mesmo assim, chamava por João Augusto,que lá de seu canto respondia: “Já vou, amor. Já vou”. Fernanda olhava para a frente da TV. A câmera fechava no rosto dela. Você não perde por esperar! Dizia, como que desse para si, com um sorriso nos lábios. Foi quando a pálpebra de João Augusto piscou.

Era confortável acordar ao seu lado todas as manhãs. Primeiro, acordava com as narinas, sentido o cheiro de Irene. O mundo vinha assim. Aos poucos. As imagens iam tomando forma dentro do ambiente escuro. Reconhecíveis. Por alguns segundos, as coisas pareciam perfeitas. O mundo parecia perfeito– enquanto se mantinha num ângulo reto de noventa graus. Só percebeu ao se levantar, apoiando-se com uma das mãos, a tontura e…Barras de ferro…BARRAS DE FERRO?! O que…o que havia acontecido? Num salto, João Augusto procurou o celular, a carteira com os documentos, mas não os encontrou. Num primeiro momento, quis gritar, mas teve medo. Parou. Tentou refazer seus passos antes de chegar até ali, mas só lembrava da novela. Flashs de pessoas se divertindo numa festa. Passou a mão na cabeça dolorida. Num facho de luz que entrava na cela, João Augusto viu sangue entre os dedos, na mesma hora que lhe subiu à garganta o vômito que despejava sobre si. “Oh, meu Deus!” Certamente havia sido espancado. Covardemente espancado. O vômito e a tontura. A perda de memória aparente, sequelas de uma concussão cerebral, talvez, de havia sido vítima João Augusto. Enquanto lá fora parecia ser algum tipo de confusão. Mesmo com a cabeça doendo, João Augusto fez um esforço. E se o tivessem mantido preso a fim de exigir algum tipo de resgate? Será que o matariam caso seus familiares não pagassem o que pediam seus sequestradores? Irene! Meu Deus! Irene! O que fizeram com sua esposa? E se o prenderam a fim de que confessasse alguma coisa? O que guardava para si de tão importante que não pudesse revelar? Não! Certamente deveria estar havendo algum engano. O confundiram com alguém. Sim.

Passos no final do corredor. João Augusto apoiou o ouvido. Agora era um grupo de vozes que chegava. Não estava só. Apenas o mantinham separado dos outros. Talvez fosse uma moeda de troca, deduziu. Agora era o rosto inchado e sem esperanças que se apoiava junto às mãos por entre as grades.

Uma porta se abriu no fim do corredor. Era o som de dois homens. Seus executores, pensou.

Sr. João Augusto?, perguntou um deles, um homem magro, de terno e gravata, com uma pasta. Ao seu lado, o carcereiro abre o cadeado e empurra a grade. Sim-sim, responde. Como este senhor sabe meu nome?“ O Sr. me daria alguns minutos com meu cliente, por gentileza? Pode nos esperar mais à frente”, diz o homem de terno em direção ao carcereiro, que sai e os aguarda no final do corredor. Quando percebe que o carcereiro está a certa distância, o homem de terno e gravata olha e, de forma moderada, pausada, olha para João Augusto e diz:

“Já entramos com o pedido, o Sr. poderá sair agora mesmo, assinar alguns papéis e aguardar o processo em casa.  Não se preocupe, cuidaremos de tudo”.

“Processo?”

“Sim, do atropelamento?”

“Atropelamento?”

“O senhor não lembra?”

“Na-não. Não lembro.”

“Bem, como posso dizer… um criança…surgiu diante do seu carro e…

“Criança?…ela… ela…”

“Sim. Não resistiu… A mãe dela, que tentou protegê-la, talvez nunca mais ande. Mas não se preocupe. Como disse ao Sr., cuidaremos de seu caso, e estamos empenhados em sua defesa.”

“Mas isso é um absurdo, eu estava em casa, sentado em frente à minha televisão…e…e esse ruído aí fora?”

“Bem, a opinião pública, como sempre, tenta distorcer os fatos. Há muitas pessoas e a imprensa aí fora. Inclusive entraremos com um processo pela tentativa de homicídio que aconteceu ao senhor logo após o acidente. Já conseguimos identificar alguns populares que participaram. Não se preocupe. Há uma outra saída aqui da delegacia que fica aos fundos…”

“E como…como isso aconteceu?”

“Segundo os policiais disseram, o Sr. estava vindo de uma festa e…”

“Eu não bebo… Nunca bebi em minha vida! A festa foi na novela! Foi a Fernanda que armou tudo isso… Mandou um homem mexer nos cabos de freio e…Meu Deus…MEU DEUS! FOI O CARRO ERRADO!”

“Novela? O Sr. disse novela?”

O homem de terno e gravata colocou a mão em seu ombro e, antes que terminasse a frase, disse: “Sr.João Augusto, por favor. Com todo respeito, se vou confiar no Sr., o Sr. tem que confiar em mim. Há mais de trinta anos trabalho no ramo. Não foi feito um teste de bafômetro porque o Sr. se negou a fazer.”

“Eu?”

“Sim, já disse. O Sr. apresentou sinais claros de embriaguez. Mas já pode sair desta cela”. Fez um sinal para o carcereiro, que abriu a grade no final do corredor.

Corte. As legendas sobem.

“E a mulher? Vai ficar sem as pernas mesmo? Vão ter que arrancar? Nem mostrou o resto depois do acidente.” Disse uma mulher a seu esposo.

“Sei lá. Agora só amanhã. Por isso é que eu não gosto de novela.”

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