Memória de peixe

Há quem acredite que peixes não dormem, não sentem dor e nem sequer boa memória têm. Este último ponto, inclusive, é até explorado na cultura pop, mais notadamente com a personagem Dory, da série de filmes Procurando Nemo, cuja principal característica é exatamente a dificuldade de acessar as próprias lembranças.

Mas o que a ciência tem a contar sobre esse senso comum? É isso mesmo ou não é bem assim? Um estudo do Departamento de Fisiologia e Comportamento (DFS/UFRN) mostra que, sim, peixes têm memória e, mais, ela pode ter influência importante sobre o seu comportamento agonístico, ou seja, na agressividade em relação a outros indivíduos com os quais interage.

Resultados dessa pesquisa foram publicados recentemente na revista Frontiers in Behavioral Neuroscience. Intitulado O comportamento agonístico de Peixes Donzela (Stegastes fuscus) é afetado pela memória, o trabalho investigou a retenção de memória em interações agonísticas, comportamentos bem frequentes em espécies territoriais, que podem oferecer informações úteis ao processo de reconhecimento individual.

Pesquisadora Mayara Silveira em trabalho de campo com a donzelinha – Foto: Tiego Costa

“Esse é mais um capítulo do que estamos investigando sobre esses peixes de recife. Mostramos anteriormente que eles têm memória muito boa para tarefas de associação [artigo publicado em 2019] e, depois, que eles reconhecem seus vizinhos e alteram a forma de combate [publicação de 2020]. Agora, mostramos que essa memória é mais limitada do que as de associação ambiental”, detalha a pesquisadora e professora do DFS/UFRN, Ana Carolina Luchiari, uma das autoras do artigo.

Para chegar aos resultados, o estudo promoveu alguns testes em fases de familiarização e reconhecimento de coespecíficos, sendo retestados após 5, 10 e 15 dias para avaliar a retenção de memória. Os dados mostraram que as donzelinhas reduziram suas exibições agonísticas quando o estímulo era familiar ao peixe, caso contrário, os animais eram mais agressivos, apenas diminuindo sua resposta mnemônica após 10 dias.

Estudo promoveu testes em fases de familiarização e reconhecimento de coespecíficos – Foto: Tiego Costa

E quanto esse período significa em relação ao tempo de vida de uma donzelinha? De acordo com Ana Luchiari, em termos comparativos, 10 ou 15 dias é pouco, indicando que essa memória especificamente não é tão duradoura. No entanto, a pesquisadora chama a atenção para o fato de o ambiente de convívio da espécie ser muito variável e passar por recorrentes mudanças de população.

“Altera o tempo todo, novos indivíduos chegam e outros saem, embora as donzelinhas sejam territoriais, e por isso nos interessou saber o quanto elas lembram dos vizinhos. Os resultados indicam que elas reconhecem os vizinhos e que lembram por um curto período, pois as mudanças ambientais são uma grande pressão seletiva para isso: armazenar uma memória que não servirá de nada é gastar energia”, justifica a cientista.

Donzela

Peixe donzela é uma jardineira do recife – Foto: Tiego Costa

Endêmica do Brasil e considerada uma espécie chave, a donzelinha tem a capacidade de regular o equilíbrio entre os diferentes animais que povoam os recifes brasileiros. Ela cultiva e controla as comunidades de algas e microinvertebrados, trabalho essencial para a saúde recifal. Por isso, de acordo com a pesquisadora, é de suma relevância conhecê-la e preservá-la.

“Em termos da biologia da espécie, a donzela é uma jardineira do recife, ela é quem mantém a diversidade de algas que servem de alimento para diversos outros animais, assim como a estrutura do recife e as relações entre as espécies dentro da comunidade. Assim, percepção, reconhecimento, memória e comportamento dessa espécie favorecem as relações harmônicas com as demais, mantendo o fluxo natural dentro desse ecossistema”, explica a pesquisadora.

Sem dúvidas, para conhecer melhor a donzelinha, é essencial entender como se dá o seu processo de cognição, a capacidade de aprender e lembrar que ela tem. Muita gente pode pensar que essa é uma função apenas humana ou, no máximo, de animais de estimação, porém, tais habilidades são bastante importantes para quaisquer espécies.

Nos próximos passos da pesquisa, cientistas querem saber quais outros tipos de memória as donzelas podem expressar – Foto: Tiego Costa

“A cognição permite que  os animais percebam o meio e alterem seus comportamentos para sobreviver. Com a crescente influência do homem nos ambientes aquáticos, como aquecimento, poluição e acidificação, conhecer como os animais funcionam e quais são os impactos antrópicos pode nos auxiliar a propor formas de mitigar tais efeitos deletérios”, alerta a pesquisadora.

Nesse sentido, já há planos para os próximos passos do estudo. As cientistas agora querem saber quais outros tipos de memória a donzela pode expressar e se a durabilidade é diferente. Além disso, o estudo vai buscar compreender como o aquecimento e a poluição dos oceanos interferem na memória, bem como os potenciais efeitos em cascata para as demais espécies que estão nesse ambiente.

Assinam ainda o trabalho as pesquisadoras Mayara Moura Silveira, Jessica Ferreira de Souza e Heloysa Araújo-Silva, todas do Departamento de Fisiologia e Comportamento da UFRN.

Fonte: AGECOM/UFRN

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