O que pode ser pior para alguém do que estar sem sua ferramenta? Acertou quem disse estar sem sua ferramenta e ainda desempregado. Não que eu estivesse morrendo de amores pelo meu emprego – talvez um transtorno psiquiátrico tenha influenciado no que acabei de escrever. Talvez meu último emprego tenha sido mesmo o emprego dos sonhos e um estado mórbido de depressão fez com que não enxergasse as coisas como elas são – mas era daquela merda que eu pagava minhas contas (desculpem o palavrão. Nível baixo de serotonina) – quer dizer, algumas das contas. Meu computador, por exemplo, que estava agora no prego, foi meu amigo Carlinhos que tempos atrás me enviou uma grana para que caras como eu tivessem a oportunidade de escrever textos como este em um maldito computador. Tudo bem, era um velho computador. Mas era o meu computador. Tenho dúvidas se o investimento do meu amigo Carlinhos foi mesmo um bom negócio. Mas amigos são para essas coisas. Quem nunca, numa noite, pagou aquela cerveja para um amigo liso? Assim, eu pensava em tudo que havia acontecido comigo até aquele dia, enquanto esperava meu amigo Fábio trazer minha cerveja.
Como não tinha muita grana pra gastar – e ainda não tenho –, fui atrás de pessoas que me indicassem pessoas. Sou fácil de acreditar em tudo o que me dizem. Para mim, todo mundo é legal – até que se prove o contrário. Então, se alguém me diz que eu não vou ser enganado por talpessoa, tenho certeza que devo confiar em tal pessoa. É uma segurança contra os instintos de presa que me acompanham desde meus cinco anos de idade. Lembro de quando, andando despreocupado pela rua, fui abordado por outro garoto um pouco mais velho, que me disse: “Queria ver sua hora”. Eu, todo orgulho, de relógio novo no pulso, respondi: “Onze horas!”. Daí o garoto, não satisfeito, me respondeu: “Não. Eu quero ver a hora que está no seu relógio. Mostre aqui”. Então assim o fiz. Entreguei o relógio na mão do garoto. E numa fração de segundos perdi o garoto, as horas e o meu relógio de pulso novinho. E nunca mais acreditei em mim mesmo.
“Esse computador é velho. Não vale o conserto”, disseram-me as pessoas que outras pessoas haviam me indicado. Ok. Mas não sei escrever no papel. Preciso do meu computador. Velho ou não.
“Sim, você consegue consertá-lo!”, sentenciou meu amigo Gorpo, que entendia do riscado. “Na 3, lá no Alecrim, há várias lojas que consertam computador.” Só de pensar me deu um nó na cabeça. Alecrim, para mim, é uma confusão de gente e de números.
“Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados (Mt, 5, 4)”, dizia a frase pintada na fachada da loja. “Ótimo, irmão”, pensei. Daí coloquei aquele olhar de Gato de Botas.
“Duzentos e cinquenta reais. Três dias”, falou-me. Caralho! Belo consolo. A menos de quatro metros, numa loja vizinha, haviam me cobrado cento e cinquenta para resolver o mesmo problema em duas horas. Mas havia outros na minha frente.
Rodei por entre outras tantas lojas e números do Alecrim. Então me indicaram o Fábio. Cheguei lá, uma quinta-feira, por volta de meio-dia, e o Fábio ainda não havia chegado. Péssimo sinal. Era uma loja para conserto de celular. Nenhum indicativo de que consertavam computadores. A não ser o que haviam me dito. Seguindo minha razão – não meus instintos de presa – decidi esperar. Acomodei-me no banco da recepção, apesar de não ter sido convidado a entrar pelo cara que consertava os celulares, preocupado que estava olhando as garotas na calçada e em acender seus cigarros. Não me dirigiu a palavra. Saí, voltei. Fábio? Nada.
Era quase uma hora quando entrou um homem com cara de poucos amigos e cruzou o balcão. “Ressaca ducaralho”, disse ao ar, passando por mim, sem ao menos olhar de lado. “É o Fábio?”, perguntei ao cara que estava fumando na calçada, vendo as meninas. “É”, respondeu-me, não sem antes lançar uma bafoarada. Não tive o que fazer a não ser correr atrás do Fábio.
“Fábio?”, indaguei, meio sem jeito, abrindo a porta de um compartimento escondido aos fundos da loja. O sujeito alisando a barriga, franzindo a testa, mediu-me dos pés à cabeça. Continuei:
“…É que meu computador tá com problema, eu já vim aqui várias vezes…” – Fábio era minha última chance. Eu não sei escrever versos em guardanapos de papel nem sei bater nas teclas de uma máquina de datilografia. Fábio, calado, apenas acenou com a mão, pedindo para pegar o computador. Expliquei. Daí o sujeito já foi tirando os parafusos. “Ah… Quanto custa?”. Olhou para mim, ficou calado por alguns segundos. “Setenta e cinco.” Deve ter percebido meu olhar de Gato de Botas. “Caralho, ressaca ducaralho! Num atendo mais ninguém nessa porra!”.
Meu amigo Fábio, que eu havia acabado de conhecer, enquanto desmontava o computador, discorria sobre suas conquistas amorosas, farras. Falava-me sobre “Cabeça Branca”, “Chocolate”, todos companheiros de orgias homéricas. Eu, lá do meu canto, assentia com a cabeça – como se também os conhecesse – falando de grandes porres que também já havia tomado, ao mesmo tempo que observava todas as peças no balcão, e pensando: Será que vão voltar para o mesmo lugar… Parecem tantas… E tão espalhadas. “Ressaca ducaralho! Vô já ali tomar outra, pra vê se passa”, dizia meu amigo Fábio, que agora se empolgava mais, enquanto desmontava o computador conversando com outro amigo que havia encostado na bancada, convidando-o para beber, e Fábio querendo terminar logo o trabalho. Pensei no pior. Porém, em menos, bem menos que imaginava, Fábio havia concluído – e ainda colocado peças sobressalentes! A velha máquina funcionando. Exatamente quando estamos fudido e um amigo vem e nos paga aquela cerveja.