O mundo celebra hoje a vida e a trajetória de um dos maiores pensadores das ciências em todos os tempos. Aos 100 anos, o filósofo Edgar Morin não permite que a idade limite seu pensamento e, mesmo com alguns problemas de saúde, segue atento e alerta. Segundo a antropóloga Maria da Conceicao Xavier de Almeida, coordenadora do Grupo de Estudos da Complexidade (Grecom/UFRN), que tem estreitas relações com o francês, ele é muito ligado às redes sociais, mantendo perfis no Instagram e Twitter e se comunicando com grande frequência pelo WhatsApp.
Apaixonado por Natal e pelo Rio Grande do Norte, sua reaproximação com a capital potiguar começou há 29 anos, quando recebeu a tese de doutorado de Ceiça Almeida. Depois disso, veio ao estado cinco vezes entre 1998 e 2012. Porém, em visita no ano de 1999, quando a capital festejava seus 400 anos de fundação, Morin disse, em conferência feita a convite da Prefeitura, no dia 4 de junho, que já havia passado por aqui algumas vezes no avião que fazia a rota Paris-Dakar e parava em Natal para reabastecer. “De dentro do avião, na pista do Aeroporto Augusto Severo, tudo o que se conseguia ver era uma propaganda da Coca-Cola”, disse.
Desde o primeiro contato de Ceiça Almeida até a vinda de Morin à UFRN, em 1998, passaram-se apenas seis anos. Tudo começou em 1992, quando, sabendo da tese de Ceiça — um olhar para a ciência sob a perspectiva do filósofo —, uma amiga solicitou que a professora enviasse o estudo pelo correio para Bruxelas, na Bélgica, onde Morin faria uma conferência. O trabalho foi recebido com muita atenção e, desde então, Morin e Ceiça firmaram laços de contato e amizade que seguem até então.
Ao retornar à UFRN, Ceiça iniciou o Grupo Morin, que se encontrava informalmente para discutir a obra do autor, sobretudo a que ela chama de “mais dura”, que são os seis volumes de O método. O projeto ganhou força e, em 1998, ela enviou um fax convidando-o para dar uma conferência em Natal. Sua fala teve como norte o lançamento do livro Amor, poesia e sabedoria. Por aqui, ele conheceu o Grupo Morin e a Fortaleza dos Reis Magos. Tomou sorvete de tapioca, concedeu entrevista coletiva à imprensa e mergulhou no mar de Ponta Negra. À noite, fez a conferência sobre o seu livro no auditório da Escola de Música da UFRN e, após o evento, participou de uma dança cigana. “Hoje à tarde, aqui em Natal, eu vivi verdadeiros momentos de poesia. Fui à praia com amigos queridos, tomei caipirinha, comi peixe em frente ao mar, tomei sol, ouvi música. Vivi um momento maravilhoso e pleno de poesia. Isso é o que dá qualidade à vida”, disse o pesquisador.
Na segunda visita a Natal, em junho de 1999, Edgar Morin participou dos festejos dos 400 anos da cidade. De acordo com o livro Conferências na Cidade do Sol, sabendo da visita de Edgar à UFRN, a Prefeitura entrou em contato com os pesquisadores da UFRN para que ele fizesse uma conferência em comemoração ao aniversário da cidade. Na presença de representantes do poder municipal e autoridades universitárias, ele proferiu a conferência: A cidade e o século no auditório da Biblioteca Central Zila Mamede (BCZM/UFRN).
Para construir seu discurso, Morin visitou outros lugares de Natal e região metropolitana. No caminho de volta da praia de Pipa, entrou na cidade de Nísia Floresta para visitar o túmulo da feminista e poeta Nísia Floresta (1809-1885). Nessa visita, ampliou suas informações sobre a relação de Augusto Comte e Nísia, além de se informar mais sobre a importância do RN na Segunda Guerra Mundial. Aproveitou para contar tudo que havia pesquisado sobre o Forte dos Reis Magos e, subindo em uma das paredes da fortificação, disse entusiasmado que Natal era a capital mundial do Pensamento Complexo.
Doutor Honoris Causa
No início de 1999, o então reitor da UFRN, José Ivonildo do Rego, em sintonia com a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), disse que pretendia submeter ao Conselho Universitário (Consuni) a aferição do título de Honoris Causa a Edgar Morin. “O meu orgulho institucional cresceu mais ainda quando li o documento norteador da Reitoria e senti que a nossa UFRN prefigurava os sinais de um novo tempo do pensamento e da ciência”, disse Ceiça Almeida na conferência da honraria.
Ceiça assinou a proposição e solicitação do título. Ela também escreveu um longo dossiê sobre a obra e repercussão internacional do pensamento de Morin, além de dar início à peregrinação pelo Departamento de Ciências Sociais, passando pelos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Ciências Sociais, além de dois conselhos de centros acadêmicos: Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA) e Centro de Ciências Sociais Aplicadas (CCSA), para então colocar a proposição para ser votada no Consuni.
“Ecce Homo! Aí está um dos expoentes mais expressivos do pensamento mundial contemporâneo. Eis o homem que quer, deseja e provoca, sem trégua, o reencontro entre ciência e humanismo. Eis o homem cujas ideias representam uma síntese aberta, mas ao mesmo tempo radical, a respeito do papel social e ético do conhecimento diante da ‘agonia planetária’ deste fim de século”, dizia um trecho da saudação feita por Ceiça durante a solenidade.
Coube, à época, aos reitores Ótom Anselmo de Oliveira e Técia Maria Maranhão a entrega do título no dia 7 de junho daquele ano. Depois da conferência, o homenageado lançou o livro Complexidade e transdisciplinaridade: a reforma da universidade e do ensino fundamental, publicado pela Editora da UFRN (Edufrn). “Hoje é uma noite de esplendor para a Universidade Federal do Rio Grande do Norte. A nossa universidade tem a honra de homenagear o professor Edgar Morin, concedendo-lhe o título de Doutor Honoris Causa, a sua mais elevada honraria acadêmica. O ato desta universidade expressa, inequivocamente, uma sintonia com as ideias e o reconhecimento público da obra de Edgar Morin”, disse o então reitor Ótom Anselmo em sua fala.
Ótom reforçou ainda as características de pensador vigoroso, polêmico e universal muitas vezes atribuídas a Morin por sua trajetória de vida marcada pelo envolvimento com as questões cruciais do nosso tempo, assim como sua postura de crítico veemente da fragmentação do conhecimento, da separação entre as ciências, das humanidades, artes e o conhecimento da tradição. “Como uma instituição que se pauta pelo exercício intransigente da crítica e pela defesa veemente dos valores e dos direitos humanos, a UFRN sente-se no dever de se indignar contra este mal-estar no nosso tempo. Por isso se solidariza e homenageia esse rebelde sem tréguas, essa figura múltipla, essa pessoa generosa, esse pensador profundamente preocupado com o destino da humanidade: Edgar Morin”, acrescentou o ex-reitor.
Essa visão foi, exatamente, a linha abordada por Morin em sua conferência após receber o título honorífico. Em seu discurso, ele tratou da crise de paradigmas do conhecimento, da fragmentação dos saberes, da separação entre o conhecimento científico e o conhecimento da humanidade, além da separação entre natureza e cultura. Porém sua primeira fala foi de agradecimento. “A grande honra que me fazem hoje tem um sentido muito especial, dada a coincidência da proposta elaborada pelo Sr. Reitor e Sra. Vice-Reitora, intitulada: Universidade e desafios contemporâneos – proposições para uma política universitária. Naquele documento, estão impressos justos diagnósticos sobre as ameaças externas à universidade, como o panorama da sociedade circunscrito ao ambiente de mercadoria geral e as ameaças internas à instituição universitária. Ali também são citados os vários problemas e crises que se interligam e que concernem a todos os órgãos de ensino”, explica.
Morin criticou a fragmentação da cultura científica que, por isso, perdeu a reflexividade global e a reflexão sobre si mesma, com a invisibilidade do sujeito humano, resultando em uma inteligência cega. “A degradação do que significa cultura e a disjunção da cultura humanista, capaz de problematizar, capaz de refletir sobre grandes problemas e de incorporar saber à vida, provocam a perda dos alimentos cognitivos que chegam à ciência”, disse em sua fala, acrescentado que a solução para isso está em uma retomada de consciência das finalidades do ensino. Para tanto, ele elencou em seu discurso as cinco finalidades que aponta como essenciais para esse propósito.
A primeira foi a reforma do conhecimento. Segundo ele, conforme as palavras de Montaigne: “melhor uma cabeça bem feita do que uma cabeça cheia”. Nesse sentido, a primeira finalidade da educação é, em seu entendimento, produzir uma “cabeça bem feita”. A segunda finalidade apontada pelo filósofo é o ensino da condição humana. “A condição humana está totalmente fragmentada e quase oculta, incógnita ao ensino. Devemos fazer a convergência de todas as disciplinas científicas e humanistas para nos instruir de nós mesmos, humanos, para conhecer o nosso destino humano”, reforçou.
A terceira finalidade apontada pelo autor é “aprender a viver”. “Aqui, o papel da poesia também é muito importante. A compreensão da dimensão do viver humano pode fluir da literatura, assim como do cinema”, esclarece. Como quarta finalidade, Morin apontou o “enfrentamento das incertezas da vida e do mundo”. Segundo ele, incertezas equivalem à erupção da incerteza na física, no princípio do século 20. “Hoje, a incerteza se difundiu por todo o horizonte dos conhecimentos e da história mundial. Não é mais uma pseudo-lei da história que nos oferece a visão do futuro. Há a incerteza e devemos nos rearmar e armar as novas gerações para enfrentar as incertezas”, esclareceu.
Por fim, a última finalidade apresentada em seu discurso, de acordo com ele tão relevante quanto as outras, é “aprender a tornar-se cidadão”. “Todas essas finalidades necessitam da renovação do mundo dos acontecimentos, que devem convergir para a renovação da democracia, a formação de cidadãos conscientes e responsáveis por sua pátria nacional, por seu continente cultural, pela terra-pátria e pela condição humana”, finalizou Edgar Morin.
10 anos de Grecom
A terceira visita de Edgar Morin a Natal, em 7 de outubro de 2003, foi para celebrar os 10 anos do Grupo de Estudos da Complexidade (Grecom). Nascido como Grupo Morin em 1992, ganhou nova nomenclatura em 1994 para abarcar todas as dimensões surgidas nos dois anos iniciais. O Grecom fez história e se espalhou pelo país, tendo inspirado grupos do Pensamento Complexo no Pará, Vitória da Conquista, na Bahia, no interior da Paraíba, em Mossoró, Ceará-Mirim e até mesmo em Natal, com o surgimento do Marginália e o Mythos-Logos.
“Para Morin, o título de Doutor Honoris Causa foi uma homenagem enorme por conta do reconhecimento que tem do Grecom. Ele acredita que esse grupo é o que conseguiu, no mundo, fazer um tipo de ciência mais complexa, pela interdisciplinaridade e pelas conexões com pessoas de diversos lugares do Brasil e do mundo”, retomou Ceiça Almeida.
Em homenagem ao Grecom, Morin presidiu o simpósio Experiências de complexidade no Brasil, que contou com a participação de 20 grupos de pesquisa de oito estados brasileiros. No mesmo dia, à noite, proferiu a Conferência Magna no Fórum para o Estudo do Homem e da Vida, com a participação de 1.200 pessoas no Centro de Convenções de Natal. Após o evento, participou do lançamento do Livro Ciclos e Metamorfoses: uma experiência de reforma universitária, de Ceiça Almeida e Margarida Maria Knobbe, que conta parte da história do Grecom. No dia seguinte, inaugurou a escultura da Casa Mãe-Terra, no Parque das Dunas. A obra de Maurício Panela, do Grecom, foi feita em homenagem ao livro Terra Pátria, de Morin.
“No dia da inauguração, Morin pediu para entrar sozinho na escultura. Ficou lá dentro por uns 15 minutos e saiu chorando. Na saída, agradeceu e disse que era como se tivesse feito uma viagem de volta ao útero de Luna, sua mãe, que morreu quando ele tinha nove anos”, disse Ceiça.
A grande conferência
No livro Les souvenirs reviennent à ma rencontre (que em tradução livre, pode-se ler: As memórias voltam ao meu encontro), Edgar Morin escreve sobre sua vinda a Natal em 2010. “Em 1992, Ceiça Almeida fundou, na Universidade de Natal onde ela ensina, o Grecom (Grupo de Pesquisa). Ela reuniu pesquisadores e professores e convidou Ilya Prigogine, Henri Atlan, entre outros. Na minha última conferência neste lugar, eu falei para 15 mil pessoas. A magnífica curiosidade de Ceiça e também o conhecimento dela das culturas indígenas da Amazônia e as culturas populares fazem com que ela faça uma epistemologia de questões sociais. Ela sabe que o pensamento complexo é um pensamento que abraça e que faz abraçar. Nós somos ligados pelo coração, pela razão e pela paixão”, escreveu Morin.
Morin pode ter exagerado no número de ouvintes em sua penúltima vinda à capital espacial do Brasil, mas por muitíssimo pouco. O Grecom estima que mais de 11 mil pessoas ouviram sua conferência O Destino da humanidade na noite do dia 17 de setembro de 2010, na Praça Cívica da UFRN. “Professores da rede pública de ensino do estado do Rio Grande do Norte, alunos e professores de universidades públicas e privadas de Natal, além de pessoas de outros estados do Nordeste, escutam Edgar Morin falar”, diz Ceiça no livro Conferências na Cidade do Sol.
Com chancela da Reitoria da UFRN, na gestão de Ivonildo Rêgo e Ângela Maria Paiva, o evento teve apoio ainda do Sindicato dos Trabalhadores da Educação (SINTERN), da Associação dos Docentes da UFRN (ADURN), da Escola de Música da UFRN (EMUFRN) e da Cooperativa Cultural Universitária, além da parceria da Secretaria Estadual de Educação. Morin participou ainda do programa Xeque-Mate, da TV Universitária, e presidiu a segunda reunião da Cátedra Itinerante UNESCO para o Pensamento Complexo (CIUEM), que tem no Grecom o seu primeiro ponto brasileiro.
“Encontrar vocês me dá uma emoção muito grande. Emoção tão grande também de falar de um problema gigante, ‘o destino da humanidade’, o destino humano. Como tratar de pensar o destino de nosso futuro humano, sem tratar de pensar nosso presente? E pensar nosso presente necessita pensar nosso passado e fazer uma associação de saberes e conhecimentos, o que é difícil e, sobretudo, complexo. Complexo significa associar, unir todas as coisas separadas. Tentemos essa aventura sabendo sempre que o futuro humano será um futuro desconhecido e ignorado”, disse Morin na abertura de sua conferência.
E, assim, o pensador trilhou um discurso inspirado na humanidade, nas crises do mundo moderno, na decepção das gerações, mas também na possibilidade de metamorfose que as relações políticas e humanas podem oferecer. Para ele, fazer da Terra nossa pátria não significa abandonar as pátrias de hoje; não significa que o Brasil não seja mais Brasil ou a França não seja mais França. “Significa integração das nações com suas riquezas culturais em um novo contexto. É possível? Parece que não, porque o processo acelerado caminha provavelmente para o pior, e o pior não é somente a possibilidade de futuros desastres, é também a ambivalência do que podemos chamar de desenvolvimento. Por que ambivalência? Porque é evidente que o desenvolvimento proporciona elementos de bem-estar, bem viver; porque acredita nos países chamados emergentes, ou seja, uma parte da população que vive como classe média no Ocidente, com o mesmo padrão de vida, com possibilidade de viajar. Porque possibilita aos jovens mais liberdade diante das autoridades tradicionais”, discursou.
Morin ainda defendeu que todas essas coisas são positivas, mas os aspectos negativos são maiores. “Ao lado do enriquecimento de uma parte da população, há também uma extensão da miséria. Miséria não é pobreza. Pobreza permite um mínimo de dignidade de vida, um mínimo de autonomia. Miséria é a situação de todos os desenraizados que vivem nas favelas, nos subúrbios. Em todas as grandes cidades da África, da Ásia e da América há uma proliferação da miséria”, afirmou.
O filósofo disse também que a metamorfose é uma coisa muito comum no mundo animal e que a reforma da vida é algo fundamental que faz parte do caminho para uma metamorfose. “Mas reforma da vida também significa reforma do conhecimento, do modo de conhecer e do pensamento, porque o que nós aprendemos nas escolas, no ensino e na universidade é muito útil, mas também limitado, porque é um saber separado em pedaços, disperso, compartimentado. Assim, não podemos reunir os elementos para enfrentar problemas fundamentais e globais das pessoas, do nosso tempo e de um mundo globalizado. É necessária uma reforma que possibilite um conhecimento complexo que permita enfrentar os problemas. Reforma de pensamento significa reforma da educação, evidente”, confirmou.
A última vinda a Natal
Faz nove anos que Edgar Morin pisou pela última vez em solo potiguar. Esteve aqui para celebrar os 20 anos do Grecom. O evento ganhou o título de Tributo a um Pensamento do Sul, que contou com a participação de intelectuais de vários estados do Brasil, entre eles o escritor e líder indígena Daniel Munduruku, amigo do Grecom, além de pesquisadores do México. Na ocasião, Morin lançou o documento: Para um Pensamento do Sul. A conferência aconteceu no auditório da EMUFRN.
Morin iniciou sua fala com uma homenagem pessoal ao Grecom e a Ceiça Almeida, que, segundo ele, anima os espíritos e as almas. “Penso que a missão do Grecom durante todos esses anos coincide com a missão da Complexidade e com a ideia de reconstrução da cultura. Como sabemos, a cultura hoje é cortada em pedaços dispersos e sem ligação. Ora, para entender e viver a complexidade da vida, é necessário religar cultura científica e cultura literária, tanto quanto a arte, a cultura musical e a cultura dos saberes tradicionais. Tudo isso tem sido religado a partir do olhar complexo de Ceiça e ampliado pelo campo de visão dos pesquisadores do Grecom, com perspicácia, e tratando a cultura para além de um mero cardápio da diversidade”, disse.
O filósofo disse ainda que a obra do Grecom é um modelo do que significa desenvolver uma investigação de conhecimentos sobre problemas humanos que são problemas históricos, sociais, biológicos. “É um modelo para mostrar o que é uma instituição sobre complexidade, e que seu sucesso faz viver a complexidade do mundo. É isso que quero reconhecer nesse aniversário dos 20 anos do Grecom. Conheci vários institutos dedicados aos problemas complexos, mas, para mim, o mais excelente, o melhor é o Grecom”, reforçou Edgar Morin.
Depois de 2012, Morin não veio mais a Natal. Ceiça é que continuou encontrando-o em várias partes do mundo, pelo menos até 2017. Atualmente, o contato dos dois segue no âmbito virtual. De acordo com ela, seus 100 anos de vida não são suficientes para limitar sua capacidade de pensar o mundo como um ambiente a ser descoberto, muito menos seu ímpeto pelas novidades e pensamentos novos.
Edgar Morin e as ciências humanas
É inegável a contribuição de Edgar Morin para as ciências, sobretudo para as humanidades. Com uma centena de livros, incluindo oito volumes de seu O método, o filósofo francês é reverenciado e homenageado em todo o mundo. Aqui na UFRN, além dos exemplos já dados, o professor Orivaldo Pimentel Lopes Junior, coordenador do Grupo de Pesquisa Mythos-Logos e membro do Instituto Humanitas, ambos da UFRN, conta que Morin teve um papel muito importante na definição do perfil da Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN, a ponto de ser criada toda uma linha de pesquisa em torno de suas ideias: Complexidade, Cultura e Pensamento Social.
“A professora Ceiça Almeida está no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) desde seu início e ela teve um papel importante na formação de vários de nós, professores do Programa. Suas orientações e produção intelectual foram marcantes, adensando-se, assim, um corpo de intelectuais que pensam as Ciências Sociais com a ajuda da Complexidade. Ao mesmo tempo, pelo Brasil afora, foram se espalhando pesquisadores que olhavam para nossa Universidade, para o Grecom e para o PPGCS como base de apoio para a propagação do Pensamento Complexo e das ideias de Edgar Morin. A vinda de Morin à UFRN, em diferentes ocasiões, indica o quanto ele mesmo viu aqui um dos polos mundiais do Pensamento Complexo. A Pós-Graduação não poderia ficar de fora desse processo.”, enfatiza.
Para o professor Alexsandro Galeno Araujo Dantas, coordenador do grupo de pesquisa Marginália e pesquisador do Instituto Humanitas da UFRN, Edgar Morin chama atenção para o que, paradoxalmente, são as Ciências Humanas. É que, segundo ele, no tempo atual, esse campo oferece a mais fraca contribuição do estudo da condição humana exatamente porque tem se apresentado de maneira fragmentada, compartimentalizada, para pensar essa condição do homem na sociedade atual.
“O mais grave disso, a consequência prática e civilizatória dessa compartimentalização é que esta esconde inteiramente aquilo que aponta como a relação entre o indivíduo, sociedade e espécie. Quer dizer, esconde-se a relação entre o indivíduo, sociedade e espécie, esconde o próprio ser humano. Se pensarmos de maneira dialética, não podemos separar a natureza da cultura”. Portanto, o homem, diz Morin, é 100% natureza e 100% cultura. “Então, nós somos indivíduo porque ninguém pode dizer ‘eu’ no meu lugar; eu sou espécie e, portanto, sou natureza porque tenho um corpo e sou sociedade porque há um outro; há um grupo que se apresenta fora de mim e que me dá condições enquanto sujeito particular. É dessa trindade, digamos assim, que se funda a condição humana. E as ciências humanas não têm, de alguma maneira, pensado nessa totalidade”, clarifica Alex.
No entanto, lembra o pesquisador, isso não é particular das ciências humanas, pois as ciências biológicas também se comportam assim. Da mesma maneira que as humanidades estão fragmentadas, as ciências biológicas também escondem ou anulam nossa noção de vida, da mesma maneira que as ciências humanas anulam nossa noção de homem. “As ciências humanas, assim como as ciências da natureza, devem servir para que a gente, ao pensar no humano, não o separe do universo, mas o situe no próprio universo. Então, as ciências humanas devem contextualizar seu objeto, assim como as ciências naturais. Esse duplo enraizamento físico, e na esfera viva, é fundamental para pensarmos uma antropologia geral como pensou Edgar Morin”, disse Galeno.
O professor Orivaldo Pimentel complementa que a maior importância de Edgar Morin para as ciências humanas é que ele removeu os limites disciplinares que restringiam as ciências a cercadinhos com polícias de fronteira. “Ficou evidente, a partir de sua obra, construída ao longo de décadas, que é impossível fazer ciências humanas restringindo a compreensão do humano ao humano como tal. No quinto volume de sua obra magna, O método, ele trata da humanidade da humanidade e começa descrevendo o enraizamento cósmico da emergência humana. É descortinador de horizontes ler Morin. Ele rompe com os impérios disciplinares das ciências, das influências que ambicionam exclusividades e abre caminhos inusitados na compreensão, na pesquisa e na descoberta de saídas”, afirma.
Para o professor e pesquisador Ailton Siqueira de Sousa Fonseca, coordenador do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (Gecom), da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), o pensamento de Edgar Morin apresenta-se, para ele, como uma via de saída. “Apesar dele não mostrar o caminho, nos ajuda a caminhar, a buscar, a construir o novo, a acreditar em utopias possíveis e sonhos realizáveis, porque aposta na força das ideias portadoras de futuro, na força das palavras e dos afetos como meios efetivos de regeneração das relações, da cultura, do ‘humano do humano’, como ele chama, e da vida. Ao bricolar vida e ideias, ao rejuntar objetos de conhecimentos e ultrapassar fronteiras dos disciplinares, Morin construiu e constrói uma ciência comprometida com o vivo. Inseriu, inclusive, a ciência em sua própria vida e, assim, teceu uma ciência mais viva e uma vida mais cientifica”, compreende.
Ceiça Almeida lembra do primeiro volume do O Método, quando Morin fala que o pleno conhecimento do homem, da espécie humana, só será possível quando conhecermos plenamente a natureza. Segundo ela, a importância desse autor para as Ciências Humanas é que ele abre esse campo e o liga a outras áreas, promovendo o estudo da vida sem nenhuma biofobia. “Ele pensa que a ciência do homem só é possível de ser feita porque reconhece o lugar onde está. Ela é um campo particular na história da vida, que é um campo particular da história da natureza. Para as Ciências Humanas, ou a gente consegue perceber que o humano é uma cadeia de ligação entre a cultura, a vida e a matéria física, ou a gente não consegue entender nunca o que é o homem, o que é a espécie humana”, aborda.
Orivaldo conta que, quando começou a estudar a Teoria da Complexidade em seu doutorado, sentiu que estava diante de uma nova possibilidade de abordagem dos fenômenos que, até então, eram restritos a um dualismo e a uma disjunção mutiladora. “Dessa aventura intelectual, surgiu um livro sobre a relação entre ciência e religião à luz da complexidade, ao qual dei o nome de O Espelho de Procusto. Nesse embalo, propus a colegas que também pesquisavam a religião e o Mythos criarmos um grupo de pesquisa e, quando o fizemos, pegamos o título do 8º capítulo do livro O Conhecimento do Conhecimento de Morin: Mythos-Logos”, complementa o pesquisador.
Ceiça recorda que conheceu Morin primeiro pelas palavras, quando fazia doutorado na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, de um dos volumes de O Método e se ligou imediatamente com as ideias do autor, sobretudo na forma de escrever um texto como um nome tão duro, tão científico – O método – no qual ele se colocava pessoalmente. “Outra coisa que me chamou muito atenção é que ele sempre teve uma posição de muita humildade como cientista. É muito recorrente, na obra de Edgar, a gratidão que ele tem por tantas pessoas com quem ele conversou e ele sempre agradece, em todo livro ele agradece, ele dá os créditos. Nem todo cientista faz assim. Também me chamou atenção o fato de ele fazer afirmações do tipo: sem amor e sem amizade eu não faria nenhuma ciência. Eu sou movido pela amizade e pelo amor. Então, esse perfil de cientista é inaugurado por Edgar”, reforça.
Para Alex Galeno, uma das primeiras questões que incorporou em sua vida de docente, de estudante e também como sujeito, a partir das leituras de Edgar Morin, foi de que precisamos de um pensamento capaz de compreender as multidimensionalidades das realidades. Isso significa, explica ele, que ao pensar nas necessidades humanas, não devemos concebê-las necessariamente como unicamente econômicas e técnicas, mas também afetivas e mitológicas. “Esse aprendizado é fundamental porque, segundo Morin, você olha o mundo da política e ele se tornou um linguajar do técnico especializado, especialmente nas questões econômicas e estruturais, sobretudo se pensarmos nos dilemas que afetam a cidade ou o dilema do humano. Assim, não só a política esvazia-se de pensamento, mas também a ciência fragmentada se esvazia”, contextualiza.
Dos vários grupos que surgiram no Brasil a partir do Grecom, o Marginália é um deles. Fundado há oito anos, o grupo debruça-se na obra de Morin, assim como de outros autores, para fomentar o pensamento, a criticidade e a produção do conhecimento. “O compromisso fundamental do grupo é exatamente atuar nessa luta por uma reforma do pensamento e contra a fragmentação. Um pensamento que fragmenta é um pensamento que mutila o ensino, que mutila a mente do estudante, assim como do pesquisador e do professor. Não existem questões apenas tipicamente intelectuais, portanto não existem coisas separadas do sujeito. Por isso, vem a ciência para a gente olhar e objetivar, distinguir e transformar em algo analisável aquele conhecimento, em algo analisável a partir das categorias que elegemos para pensar este próprio conhecimento. Então, é isso que a gente tenta fazer no Marginália e é o grande legado desse pensador que completa 100 anos”, disse Galeno.
A perspectiva do Grupo de Pesquisa Mythos-Logos, coordenado por Orivaldo Pimentel, tem sido, desde o começo, fazer as pesquisas no campo da religião não como investigadores em busca de explicações que tornam o fenômeno banal, mas como interação e diálogo. “Daí surgiu uma nova proposta epistemológica de estudos da religião e do mito, que defendi na minha tese de titularidade: As Parcerias do Conhecimento. Nada disso teria sido possível sem esse novo patamar da ciência que nós chamamos de complexidade conforme proposto por Edgar Morin”, conta.
O Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (Gecom/UERN) é um dos exemplos dos grupos de pesquisa em Morin surgidos para além dos muros da UFRN. A iniciativa foi criada em fevereiro de 2008, após se juntarem, no Departamento de Ciências Sociais da UERN, professores que desenvolviam trabalhos de pesquisas no Grecom/UFRN, na Base de Pesquisa Cultura, Política e Educação, também da UFRN, e no Núcleo de Estudos da Complexidade (Complexus – PUC/SP). De acordo com Ailton Siqueira, até hoje o Gecom mantém diálogos e parcerias com o Grecom. “O Gecom é formado por professores/pesquisadores e alunos de diversos cursos, a exemplo de Filosofia, Pedagogia e Enfermagem, Letras, Física, Turismo, Direito e Comunicação Social. Isso faz do grupo um lugar fértil para diálogos transdisciplinares e polifônicos, indo, portanto, de encontro a uma cultura científica da fragmentação disciplinar e dos monólogos acadêmicos redutores”, completa o pesquisador.
A biografia impossível
Seria inverossímil definir uma biografia linear ou utilizar o tempo em linha reta para contar a história de Edgar Morin. O Filósofo completa, nesta quinta-feira, 8 de julho de 2021, seus 100 anos de vida extremamente bem vividos, mas para quem viajou o mundo inteiro e escreveu uma centena de obras indispensáveis ao pensamento e às humanidades, esse tempo físico observável pode ser entendido apenas como uma medida efêmera, dadas suas complexas imbricações e ressignificações.
Edgar Nahoum nasceu em Paris, nesta data em 1921, mesmo ano de nascimento do príncipe Filipe, Duque de Edimburgo e consorte da Rainha Elizabeth II, e do educador Paulo Freire. Nesse ano, também foi anunciado o Prêmio Nobel de Física para Albert Einstein por seus serviços à física teórica e, especialmente, pela sua descoberta da lei do efeito fotoelétrico.
Judeu de origem sefardita, Edgar é filho de gregos que se naturalizaram franceses, seu pai Vidal Nahoum, comerciante originário de Salônica, e sua mãe Luna Beressi, que faleceu quando ele tinha apenas nove anos de idade. Criado pelo pai, dedicou-se, desde muito jovem, à leitura. Curioso, logo interessou-se pelo autodidatismo e a investigação. Em 1940, aos 19 anos, prestou exame e ingressou na Universidade de Sorbonne, matriculando-se, simultaneamente, nas faculdades de Letras, de Direito e de Ciências Políticas. Seus estudos foram interrompidos devido à invasão alemã na França, ainda em 1940, em decorrência da Segunda Guerra Mundial. Mas, em 1942, Edgar formou-se em Letras, Geografia e em Direito.
Segundo Juliano Nery de Carvalho, em monografia publicada na Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal de Juiz de Fora, desde 1938, o jovem Edgar passou a militar em uma corrente de estudantes defensores do socialismo de linhagem trotskista, que levantava a bandeira do nacionalismo, além de um rechaço à guerra. “Com um interesse cada vez maior pelas ideologias advindas da União Soviética, Edgar acaba inscrevendo-se nas fileiras do Partido Comunista Francês. O ano era 1941 e é neste período em que, vivendo na clandestinidade e contestando a invasão alemã em seu país, o jovem, então com 20 anos, muda o seu nome para Edgar Morin, nome com o qual se consagraria”, explica.
Ainda conforme Juliano, o posicionamento político favorável às fileiras comunistas de seu país eleva Morin, já em 1945, ao status de tenente-coronel do exército francês na zona de ocupação francesa em regiões fronteiriças após a Insurreição realizada no ano anterior. “Nessa mesma época, em meio ao turbulento contexto do pós-guerra, Morin casa com a socióloga Violette Chapellaubeau, que foi sua colega de faculdade e já era sua companheira há quatro anos. No ano seguinte, decide deixar o exército e volta a morar em Paris, cidade na qual nascem suas duas únicas filhas, Iréne (1947) e Véronique (1948)”, completa.
Morin lançou seu primeiro livro, O ano zero da Alemanha, em 1946, no qual exime o povo alemão de uma culpa coletiva pelas atrocidades ocorridas na guerra. Seu primeiro livro traduzido para o português foi O cinema ou o homem imaginário, publicado em 1958.
Morin passa por muitas dificuldades, mudando de cidades, trabalhando em algumas atividades pouco rentáveis, embora todas voltadas para seu intelecto. Em 1951, foi expulso do Partido Comunista por criticar a política implementada pelo General Tito na Iugoslávia e os excessos do stalinismo soviético. Em 1959, ao lado de Roland Barthes e Georges Friedman, concretizou o Centro de Estudos de Comunicação de Massa (Cecmas) e, em 1962, lançou a revista Comunicações, que dirigiu de 1973 a 1990. Ainda em 1973, assumiu o cargo de co-diretor do Centro de Estudos Transdisciplinares francês, cargo que exerceu até 1989, período em que trabalhou arduamente em sua principal obra: O método.
Atualmente, casado com sua quarta esposa, a socióloga e urbanista Sabah Abouessalam Morin, vive entre o interior da França e o interior do Marrocos. Antropólogo, sociólogo e filósofo, realizou estudos em Filosofia, Sociologia e Epistemologia e, pelo conjunto de sua obra, é considerado um dos principais pensadores contemporâneos e um dos principais teóricos da complexidade. Sua história pode ser lida em diversos livros, revistas, sites e portais e em vários formatos, inclusive em quadrinhos. Um site sobre seu centenário reúne suas obras, parte de sua história, vídeos e várias outras produções a seu respeito.
Fonte: Agecom/UFRN