O rei da resenha

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Já estava saindo, quando lá de trás vieram os gritos: “Motorista, espera! Vem um homem correndo! Deve ser alguém da família, pensou. O tipo – obeso, de lábios grosso e nariz chato – subiu no ônibus, mas não sem algum esforço. Com uma das mãos apoiou-se à barra que dava acesso aos degraus, enquanto a outra se agarrava ao peito, procurando ar.  Fez um pequeno gesto de agradecimento ao motorista ao mesmo tempo em que limpava o suor da testa com um lenço. Procurou um banco vazio. Cumprimentou-os a todos, e sentou-se a um canto. Antes de engatar a marcha e dar partida novamente, o motorista ainda teve tempo de observá-lo pelo retrovisor. Ficou para si, mas achou estranho. Pensou ter visto alguém muito parecido quando levava, há apenas dois dias, outro grupo ao cemitério do Bom Pastor. Certamente, acharia ainda mais estranho, se soubesse que aquele homem, que chegou de forma tão atabalhoada, conhecera a pouco o finado. Veio pela curiosidade. Pela movimentação de pessoas num velório em frente a uma rua, quando passava ali.

Ei, coisinha, que confusão é aquela? Perguntou referindo-se a um dos garotos que conversavam na esquina, porque nunca lembrava seu nome.

O quê?

Aquela ruma de gente ali naquela casa. O que foi aquilo?

Sei lá.

Porque tu não vai lá , Doda? Tu não tem coragem?” Disse Neno, o menor deles. Sabendo justamente o efeito que aquilo iria produzir.

Num tenho? Menino, tu não me conhece! Vou lá saber agora o que foi aquela resenha! – Ajustou seus indefectíveis óculos escuros e partiu enquanto os garotos riam.

Menino, aquilo foi um infarte fulminante! O homem descobriu que tava levando chifre da mulher! Passou mal de madrugada e não aguentou disse aos meninos, minutos depois de colher a reportagem, nome que dava aos mexericos. O micro-ônibus chega daqui a meia-hora. Vou lá em casa me trocar!

Pra fazer o quê? perguntou o menino, que Doda sempre tomava por coisinha, já imaginando sua resposta.

O quê? Vou ao enterro do finado, ora!

Ao contrário das carpideiras,ninguém sabia ao certo o que motivava. Longe de ser apenas por uma questão de solidariedade a um estranho, quando prestava os pêsames às famílias, aproveitava a ocasião para observar suas casas, cada detalhe dos cômodos, as pessoas que transitavam no velório, os modos como estavam vestidas, e a forma como se comportavam naquela ocasião. Tudo era motivo para uma resenha.

…A mulher não teve nem vergonha. A irmã chorando, o cunhado morto na sala, enquanto ela se agarrava com um macho na cozinha…

…Um povo tão metido a rico, mas nem um cafezinho ofereceram. Cheguei em casa morrendo de fome. Deus me livre!

Doda ficava tão à vontade durante essas ocasiões, que não eram raras as vezes que chegava e consolava viúvas, mães, filhos e filhas, tomando-os pelas mãos, deixando que as lágrimas molhassem sua camisa, e essas pessoas, tão desorientadas, nunca lhes chegavam mesmo a perguntar, de onde conheciam o defunto. Alguns, imaginavam que fosse amigo do defunto, outros, um parente distante.

Tu não soubesse não, coisinha? Morreu com dois tiros. Era primo, do cunhado, do amigo do meu irmão. Foi lá em Cidade Nova! Nem toda semana morria gente lá no bairro, mas isso não era motivo para que deixasse de cumprir sua agenda. Afinal, todo dia morria gente, em todo lugar. Por isso mesmo, realizava uma minuciosa prospecção de finados assistindo diariamente aos programas policialescos da televisão.

Só existia uma coisa que rivalizava com o hábito de papa-defunto: O futebol. Doda era torcedor fanático do ABC. Sempre que podia, ia ao Castelão, com o rádio de pilha colado ao rosto, gritando, xingando, observando cada lance, cada jogada, através das lentes de seus óculos escuros. Um dia comprou um conjunto de ternos e decidiu criar um time de várzea, formado por adolescentes, do qual era técnico e cartola: A Caldeira Futebol Clube. Com isso, todo garoto que cresceu pelas redondezas poderia imaginar chegar a ser um dia como o Roberto, zagueiro do ABC, a maior estrela do bairro.

Da beirada do campo, Doda, aos berros, instruía os garotos sobre posicionamento. E como todo time, mesmo sendo um time de várzea, alguns jogadores, mais habilidosos que outros, gozavam de certo status. Eram suas estrelas. Empertigados, davam-se ao luxo de chegarem atrasados em dias de jogo, e mesmo assim, ditarem a posição ao qual iriam atuar, como era o Manoca, que não movia um palmo além da área adversária, e sempre queria a bola no pé. Ganhando ou perdendo, quando Manoca chegava, alguém saía. Doda garantia isso, além de roupas, bebidas, dinheiro, cigarros e o que Manoca mais desejasse.

Próximo do fim, não eram poucas as vezes em que se encontrava Doda bebendo na companhia de vários adolescentes. De preferência, suas estrelas. Boas de dribles e, por isso mesmo, sabendo aproveitar tudo o que tinha a oferecer, para logo livrarem-se dele quando estava bêbado. Ficava muito insistente.

Certo dia,Doda foi arremessado à calçada. Ficou estatelado no chão, enquanto um homem lhe xingava “Viado safado!” Quando, mesmo desequilibrado, conseguiu se por de pé, levou um murro nas costas, desandou, caiu novamente. Desta vez, de joelhos. Levantou-se, olhou para as pessoas ao redor e partiu, sem dizer palavra.

Para a surpresa de muitos, quando veio a falecer, a notícia chegou sem alarde ou resenha, como as que rotineiramente divulgava. Até mesmo as causas do óbito eram desencontradas. Uns falam de infarte, outros, algo relacionado as consequências de sua diabetes. Talvez com dizia o próprio Doda “A melhor informação é a minha, porque vou em busca dos fatos”- ou, como andam até hoje dizendo por aí: morreu de tanto beber os mortos.

Conto do livro “Inventário do Tempo e da infância”

 

 

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