O sonho é a prova de que imaginar, sonhar com aquilo que nunca aconteceu, é uma das mais profundas necessidades do homem (Milan Kundera).
Nascido em Macaíba, no ano de 1874, Henrique Castriciano teve uma infância melancólica. Perdeu cedo os pais e avós, exceto a materna, Dindinha, que se incumbiu da educação do jovem órfão e de seus quatro irmãos, entre os quais Eloy e Auta de Souza¹. Desde tenra idade, Castriciano veio a contrair o bacilo da tuberculose (que tantos ceifou ao longo do século XIX), enfermidade com a qual conviveu durante toda a juventude, o que, entretanto, não esmaeceu seu pendor literário. Com apenas dezoito anos, sob os auspícios do então governador Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, tornou-se colaborador do jornal A República, na época o mais influente do estado, donde se revelaria, além de poeta², arguto crítico de costumes e ensaísta.
Nas primeiras décadas do século XX, o sistema educacional do Brasil passava por graves dificuldades, herdadas do regime monarquista. Para se ter ideia, 65% da população brasileira com idade igual ou superior a quinze anos constituía-se de analfabetos em 1920³. Quanto à realidade do alunado feminino, a situação era ainda mais alarmante, pois o preconceito em relação ao “sexo frágil” consistia numa arraigada crença social. Cabiam à mulher, basicamente, duas funções: gerar filhos e cuidar dos afazeres domésticos. Ensiná-la a ler e escrever, para muitos, ainda era incitar correspondência amorosa. Tal ponto de vista coadunava-se com a mentalidade patriarcal (reminiscência da colonização lusitana e do Império), sobremodo difundida em um país cuja população ainda se concentrava máxime no campo.
Como publicista, Castriciano chamou a atenção das autoridades públicas para a necessidade de reformar a educação escolar brasileira, sobretudo no que dizia respeito à instrução feminina. Apropriando-se do ideário comtista, ainda em voga no meio intelectual brasileiro do período, o “príncipe dos poetas potiguares”4 propugnou a tese de que à mulher competia a transmissão de valores construtivos para os filhos na primeira infância, valores estes que permitiriam aos futuros adultos empreender uma genuína “regeneração social” na nação. Com a finalidade de realizar essa tarefa, “destinada pela própria Providência”, a mulher deveria ter acesso a uma formação escolar mais acurada, que levasse em consideração os aspectos intelectuais, morais e físicos.
Em fins da década de 1900, devido à saúde combalida (à tuberculose somavam-se suspeitas de bócio), Castriciano rumou para a Europa em busca de tratamento médico nos sanatórios daquele continente. Todavia, ao desembarcar nas terras do Velho Mundo, passou mais tempo a se dedicar à pesquisa na área educacional (uma de suas maiores preocupações) do que propriamente frequentar os consultórios médicos. Em visita à Suíça, acabou conhecendo a École Ménagère de Fribourg, na qual se inspirou para dar à luz, alguns anos depois, uma instituição escolar que viria a ser notória em todo o Brasil: a Escola Doméstica de Natal.
Ao regressar ao estado, com o aval do então governador Alberto Maranhão e a maciça participação de intelectuais potiguares, Henrique Castriciano fundou, em 1911, a Liga de Ensino do Rio Grande do Norte, instituição privada sem fins lucrativos, cujo papel seria auxiliar os poderes públicos em questões concernentes à educação (até mesmo na edificação de escolas). Segundo seu idealizador, a Liga de Ensino tornar-se-ia, com o passar dos anos, um baluarte da resistência à inépcia das políticas públicas no setor da educação popular.
Passados três anos, coube a Joaquim Ferreira Chaves, chefe do estado na ocasião, a instalação da Escola Doméstica (Castriciano mais uma vez, devido à saúde frágil, viajara à Europa), exclusivamente concebida à clientela feminina. O seu currículo, apesar de circunscrever a ascensão da mulher à célula doméstica, trazia algumas inovações para o Rio Grande do Norte da época, especialmente o caráter prático das atividades didático-pedagógicas, resultante, com efeito, do apreço de Castriciano pelos ofícios manuais, tão desprezados pelas classes dominantes, que os associavam à já ab-rogada escravidão (as atividades práticas continuavam a vistas como “coisas de escravo”). Em 1917, deu a sua contribuição ao esporte, organizando o primeiro grupo de escotismo potiguar.
Na década de 1930, participou da criação da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, da qual seria o primeiro presidente. Em decorrência da tíbia saúde e do avanço da idade, suas aparições públicas foram aos poucos diminuindo. No discurso que elaborou como paraninfo das formandas da Escola Doméstica, no ano de 1938, lido, no momento da cerimônia, por seu irmão Eloy de Souza (e depois publicado no jornal A República), referiu-se com altivez e orgulho à sua maior criação:
O nosso intuito sempre foi educar a mulher, ao mesmo tempo que lhe fortalecemos o espírito pensando nas realidades da vida, para lhes dar o ideal que ainda falta de um modo geral à sociedade brasileira, isto é, a aspiração consciente de colaborar de maneira direta e efetiva no desenvolvimento social da nação.5
Em 1947, Castriciano veio a falecer, na Policlínica do Alecrim. O calvário, há anos contumaz, finalmente cessou: as sequelas de um derrame cerebral fizeram-no descansar para sempre. Para nós, seus pósteros, esse macaibense figura como o mais atuante intelectual potiguar das duas primeiras décadas do século XX, e a sua Escola Doméstica continua, até hoje, a prestar serviço às moças potiguares.
- Eloy de Souza (1873 – 1959) chegou ao Senado da República, enquanto Auta de Souza (1876 – 1901) destacou-se como poetisa, a despeito de ter somente um livro publicado, intitulado Horto.
- “Publicou, além de uma enorme colaboração nos jornais e alguns textos para teatro, pequenos ensaios de ficção e os seguintes livros de poemas: Iriações (1892), Ruínas (1899), Mãe (1898) e Vibrações (1903)” (SANTOS, Tarcísio Gurgel dos. Informação da literatura potiguar. Natal: Argos, 2001. p. 178).
- RIBEIRO, Maria Luisa dos Santos. História da educação brasileira (a organização escolar). 16 ed. rev. e amp. Campinas: Editora Autores Associados, 2000. p. 81.
- Esse epíteto lhe foi dado por Luís da Câmara Cascudo, seu admirador, biógrafo e amigo.
- CASTRICIANO, Henrique. Discurso do Dr. Henrique Castriciano de Souza. In: ALBUQUERQUE, José Geraldo de. Henrique Castriciano: seleta (textos e poesias). Natal: Liga de Ensino do Rio Grande do Norte, 1993. p. 375.
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