Era de aquário

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Ao som de tamancos se aproximando do portão, não teve dúvidas. Como um marujo no alto dum mastro, gritou: lá vem Marta Rocha!

O pai se fechou numa expressão séria. A mãe, lá da cozinha, logo o repreendeu. Menino, deixa de cabimento! Ela tem nome! Se ela souber que você a chama assim… Não quero confusão nessa casa!

Foi de seu pai de quem escutou a primeira vez o nome.

Pensa que é a Marta Rocha, com aquela cara cheia de reboco. Se acha uma menininha…

Elígio, não diga isso dela!

E não é?

Ela é a única amiga que tenho, a única pessoa que vem me visitar! Vivo muito só nessa casa!

Ela só quer se aproveitar de tu, sua besta! O que é que ela vem fazeraqui se não é falar de macho?Levar o que você não tem?Ainda lhedigoumas verdades!

Você não tá doido!

O diabo que me carregue se eu não disser!

Neno não achava que o pai estivesse de todo enganado. Afinal, eram raras as vezes em que Marta Rocha não saía de sua casa com algo. Fosse charque para dar aos cinco filhos pequenos ou algum dinheiro. No entanto, era quem ajudava a mãe com a Louca. Uma das poucas pessoas que fazia com que a Louca mostrasse seu sorriso de gengivas vermelhas.

Marta Rochahavia sido uma Miss. Soube disso quando perguntou a Pedrinho se ele a conhecia. Talvez fosse esse o motivo de os comerciantes se espicharem toda vez que a viam passar.

Foi na feira que Mirtes a conheceu. Disse que havia perdido o dinheiro para comprar o frango. Coçou a cabeça, falou para si, em voz alta: o que esses cinco meninos vão comer? E agora, meu Deus? Mirtes, penalizada, pagou pelo frango e ganhou uma amiga.

Eu tenho certeza, mulher! Tá aqui, do jeito que foi no meu sonho. “Prepare-se! Um fato inesperado vai mudar sua vida”, leu para Mirtes, segurando a folha do jornal.

Mas eu não posso sair assim, né? Vou pegar aquele teu vestido emprestado, disse Marta Rocha, enquanto abria as tampas da panela na cozinha.

Você não acha pouco tempo? Dez dias?

Mulher, o signo dele bate com o meu. Tá aqui, peixes! Homem doce, carinhoso. Tudo o que eu preciso! Além do mais, ele é a cara do Francisco Coco quando ele fez aquela novela que ele tava de bigodinho – falava enquanto continuava abrindo as tampas

Mulher, tenha fé em Deus.

Eu tenho. Só não tenho nos homi. Mas fiz um trabalho na macumbeira pra garantir. Eu pedi um lenço dele.

Sei não…

Isso é o quê? Guisado? Não sei nem o que aqueles meninos vão comer hoje à noite…

Antes de sair, devolveu a página amarrotada do horóscopo a S. Elígio – que rangeu por entre os dentes – e fez um afago em Neno.

Lá pelas tantas, Mirtes chamou Neno. Longe da presença e dos olhos de Elígio, entregou ao garoto um saco com dois pacotes enrolados em jornais velhos e disse a ele que fosse à casa de Marta Rocha entregar a encomenda.

Não deixe que Elígio veja – alertou. Vá e volte logo.

Assim se dava o contrabando em sua própria casa. Dos pedintes no portão à amiga em apuros, a mãe preparava e enviava Neno nessas missões sem que o pai percebesse. Meu Deus, se ele sonha! Por isso Neno tinha o máximo de cuidado.

Marta Rocha morava a algumas ruas de Mirtes. A casa era suja e velha e estava sempre fedendo a merda. Os filhos pequenos faziam as necessidades aonde fosse mais cômodo, junto com os cachorros e os gatos. Espremiam-se naquele casebre, além das cinco crianças, Marta e a mãe quase cega. A velha se arrastava pelas paredes limpando as duas crianças menores e as fezes dos animais. Recebia, em reconhecimento, escárnio e desrespeito, principalmente da menina mais velha, que não parava em casa, e do primogênito, que passava o dia jogando bola. “Mandem essa velha calar a boca!” era o de menos.

Quem atendeu Neno foi outra filha. Nicinha.

Nicinha sempre teve os olhos em Neno, que por ser um garoto não conseguia perceber. Só a enxergou mais tarde, quando botou corpo, quando estava namorando um rapaz.

Me empreste esse graveto, ele lhe falou.

Só se você me der um beijo.

Tô brincando, pega – disse ela, estende-lhe o graveto. Foi a única vez que ela foi ousada. Já que dele não havia iniciativa. E à medida que Neno crescia, perguntava-lhe com um sorriso no rosto coisas como “por que seus irmãos têm cada um um pai”? Ele sabia que a deixaria ruborizada, da mesma forma como ela o havia deixado ao lhe pedir um beijo.

Nicinha sorriu ao vê-lo quando abriu a porta.

Tome, é pra sua mãe.

Marta Rocha surgiu por trás enrolada numa toalha na altura dos seios, com a cara cheia de reboco e um perfume que deixou Neno tonto. E antes que Nicinha dissesse alguma coisa, arrebatou o pacote e lhe agradeceu. Muito obrigada, meu filho. Diga a sua mãe que amanhã eu entrego o vestido. Ao se despedir de Neno, Nicinha ficou triste. Sabia que dentro daqueles dois pacotes havia bem mais do que roupa. Talvez Neno tenha notado o seu enrubescer.

Mirtes estranhou quando há quatro dias a amiga não ia a sua casa. Nunca havia passado tanto tempo assim. Até que lhe chegou um bilhete. Nicinha veio no portão e o entregou a Neno. Dizia assim:

“Amiga, estou precisando muito da sua ajuda. Só você pode mim ajudar. Vinheram cortar a luz aqui de casa ontem. Tamo aqui tudo no escuro. Tenho medo que aquela carne que você mim deu si estrague. Três papel atrazado. O pai de Neto até tinha mim dado o dinheiro da penção, mais aquele bandido mim pediu imprestado, dizendo que mim pagava. Fui lá na pozada e sobe que ele tinha si mandado. Voltou para o Rio e não me dice nada! Mentiu até no mês que naceu, o cachorro! Ele era de aquario!”.

Este texto fará parte do livro “Inventário do Tempo e da ınfância”

 

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