Recentemente, emergiu uma discussão sobre a neutralidade da língua portuguesa. Ou, na verdade, sobre a falta de neutralidade. Os que advogam a mudança dizem que “o objetivo é tornar a língua portuguesa inclusiva àqueles que não se sentem abrangidos pelo uso do masculino genérico”. Para outros, não é necessário distinguir os gêneros de determinado grupo quando há a presença de homens e mulheres. O cerne da questão não está apenas nesses pontos.
Em geral, a flexão de gênero em português é feita com a troca de “-o” por “-a”, ou com o acréscimo da vogal “-a” no final da palavra: cozinheiro – cozinheira, doutor – doutora. A primeira tentativa de alteração estabelecia uma identificação artificial de gênero neutro, substituindo-se o artigo “o” por “x”, “@” ou outro símbolo que supostamente afastasse a marcação binária de sexo masculino ou feminino. Essa estratégia logo se tornou ineficiente simplesmente porque dificulta a fala e a leitura.
A segunda tentativa – tão ineficiente quanto a primeira – foi substituir a vogal temática e o artigo pela letra “E”, pelo “I” ou mesmo pelo “U”. Não é necessário explicar, por questões óbvias, o fracasso dessa alternativa. Mas vale fazer um exercício de imaginação. Um fragmento como “os professores brasileiros” viraria “es professores brasileires”.
É interessante lembrar que “a linguagem neutra é uma proposta de reflexão sobre representatividade e objetiva tornar a língua portuguesa inclusiva para pessoas transexuais, travestis, não-binárias, intersexo ou que não se sintam abrangidas pelo uso do masculino genérico”. A ideia é que “a linguagem neutra seja uma tentativa de alguns falantes para que o português possa abranger uma parcela invisibilizada da população”. A pergunta é: “E se todos que se sentirem ‘invisibilizados’ resolverem criar uma língua neutra?”
Nem sempre a terminação “-o” ou “-a” indica o gênero masculino ou feminino: o grama, o telefonema, a comichão. Não se deve confundir o gênero da palavra com o sexo do ser, porque todos os substantivos possuem gênero, quer se refiram a seres, objetos ou coisas: o indivíduo, o remédio (gênero masculino); a pessoa, a música (gênero feminino). No entanto, pai, por exemplo, refere-se a ser humano do sexo masculino, e mãe, a ser humano do sexo feminino. Isso comprova que não é a vogal final da palavra que expressa neutralidade.
Poderia traçar outra linha de raciocínio, mais pelo lado da filosofia da linguagem, para mostrar que não existe linguagem neutra. Tudo é carregado de intencionalidade. Se digo que “integrantes do MST ‘ocuparam’ uma área”, também posso dizer que “eles ‘invadiram’ essa área”. A escolha do verbo define de que lado eu estou. Não há neutralidade. Isso ocorre sempre em manchetes de jornais. Cada um representa discursivamente a notícia de acordo com seus interesses. Assim, posso dizer que a tentativa de uma língua neutra não tem neutralidade, pois, como tudo na língua, carrega uma intencionalidade.
Voltando à gramática, embora seja verdade que, em outras línguas, as marcações de gênero se deem de forma diferente, isso nem sempre facilita o aprendizado ou o entendimento. Outro ponto é que cada língua tem suas características. Não parece ser um caminho viável tentar mudanças baseadas em outra língua, pois, seja qual for, uma língua estará sempre baseada em costumes, cultura e sociedade. Não se muda uma língua sem que se mude uma cultura.
De todo modo, o assunto ficou sério e chegou à Câmara dos Deputados. O Projeto de Lei 5248/20, de autoria do deputado Guilherme Derrite (PP-SP), proíbe o uso da “linguagem neutra” na grade curricular e no material didático de instituições de ensino públicas ou privadas no ensino da língua portuguesa no ensino básico e superior. A proposta inclui a vedação em documentos oficiais dos entes federados, em editais de concursos públicos, assim como em ações culturais, esportivas, sociais ou publicitárias que percebam verba pública de qualquer natureza.
Como Derrite, defendo que estudantes têm o direito de aprender a língua portuguesa de acordo com a norma culta, com as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), com o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) e com a grafia fixada no tratado internacional vinculativo do Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa.
Porém, acho que o Projeto de Lei do deputado não passará de um projeto; assim como a linguagem neutra não passará de um rabisco. As pessoas interessadas nessa mudança merecem e precisam de respeito. Mas necessitam enfrentar outros desafios mais cruciais do que a linguagem que chamam de sexista. “Quando ouviram o ruído, reuniu-se a multidão, e todos ficaram confusos, pois cada um ouvia os discípulos falar em sua própria língua”. At 2,6
João Maria de Lima é mestre em Letras e professor de língua portuguesa e redação há mais de 20 anos.
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