E aqui mais um belíssimo texto do poeta Eduardo Ezus, que por esses dias vai estar me ajudando na coluna, enquanto finalizo um projeto.Acho que não preciso dizer que estarão em boas mãos. Até logo.
Primeiro romance de Íris, o livro carrega marcas da cronista que a autora também é: uma linguagem simples, concisa, que aos poucos vai revelando as sutilezas (por vezes violentas) do ambiente, das personagens, da visão do narrador, que neste caso, são mais de um. Assim, destaco um primeiro ponto sobre o romance: a voz narrativa varia durante o livro. Penso que a autora entendeu isso como preciso para que houvesse um maior adensamento psicológico e contextual sobre o que estava sendo narrado.
O narrador predominante é Otávio, ou Tavinho. Através de sua voz, é contada a história das vidas que permeiam quatro gerações da família Alencar, ao mesmo tempo em que ele mesmo relembra episódios de sua própria vida, sobretudo, da infância. No entanto, em momentos específicos do romance, vemos surgir a voz de Flor de Lis, sobrinha de Tavinho, ou mesmo de Nina, a tia, e é através dessas vozes, que aparecem para complementar a voz do narrador predominante, que podemos nos aproximar de um entendimento sobre a vida não apenas do ponto de vista impessoal: as pessoas têm as vidas que têm por motivos específicos, que nem sempre ou mesmo quase nunca confirmam aquilo que é dito por alguém externo.
Não posso deixar de comentar a conexão que senti ao ler que para Tavinho, um narrador sensível, poeta, que sofre por ser desta maneira em um mundo um tanto “quadrado”, para ele o quarto era o melhor e mais seguro lugar para se estar. Neste mesmo instante da leitura, lembrei-me de Lavoura Arcaica, romance de Raduan Nassar, que nas primeiras linhas, nos arremata e arrebata: “o quarto é inviolável.” Interleituras, transleituras, escrever…
Outro ponto importante do livro é a maldição lançada pelo patriarca, avô de Tavinho: ninguém será feliz no amor. E quando digo “ninguém”, me refiro apenas às mulheres, primeiro alvo da fala, embora, no livro o alcance dessas palavras tenha sido estendido.Na figura deste avô, está a representação estrutural de um modelo familiar destruidor e hipócrita, falsamente religioso, verdadeiramente perigoso: a mulher deve ser serva, o filho deve almejar posição social (no sacerdócio, na medicina, na política), a família como um todo deve se submeter ao pai – que no romance é representado pelo avô – dono da palavra final, sabedor do que é possível a cada um. Através deste modelo, vemos a solidão segregada às mulheres, “sempre a pedir perdão com os olhos”, “do fogão ao tanque”; a libertinagem alcançar um filho, que encobre a sua verdadeira sexualidade; a atitude deliberada dos homens em suas relações conjugais e parentais; a ausência do diálogo; a violência, a embriaguez e as drogas; os sonhos reprimidos; os amores não vividos. É por estas e outras questões que as personagens do livro se curvam. Íris, ao tratar de questões políticas, feministas, humanistas, não guarda receio: fala claramente, sem muito espaço para rodopios de linguagem. O que é preciso ser dito, através das personagens que narram, de fato é dito.
Apesar das temáticas, o livro é de leitura agradável e poética. Os capítulos são curtos, a cadência é muito boa. O essencial está escrito. Afinal, temos aqui uma poeta e cronista nos revelando através de uma narrativa, o resultado de profundas introspecções. Dá para sentir o sol que produz “dormência nas pessoas”, à areia do Rio Putiú; “o vai e vem da água”, “cor de caramelo em repouso”, que “desliza pelos corpos seminus”; a viva vivida como ela é…