Nudez

Publicidade

E aqui mais um belíssimo texto do poeta Eduardo Ezus, que por esses dias vai estar me ajudando na coluna, enquanto finalizo um projeto. Acho que não preciso dizer que estarão em boas mãos. Até logo.

Nudez

Ana, Luiz, Maria, todos dormem nesse momento. Apenas eu, silencioso, saio do quarto e abro a porta da sala, devagar. Os primeiros raios anunciam-se longe e o vento é aquele que a madrugada traz numa noite de sertão.

Um a um, observo todos os jarros: a flor-do-deserto, com enxerto de outra espécime, aflora multicolor, as pontas das pétalas como um precipício para o orvalho; o manjericão, lança perfume ao ar, inebriante; o hortelã, esparramado, ganha o espaço de tudo e cobre o jarro, que para mim já nem existe.

Contemplo e me vingo: no fundo, é tudo um arranjo e um quê de malícia contra a engrenagem geral. Em algumas horas, sirenas, fumaça, vozerio irão ocupar cada espaço, e a cidade e o dia irão tomar seu turno comum. A pressa irá acobertar nossa ínfima existência e sugar o belo e o sublime para uma embalagem à vácuo. E sinto que tudo irá acabar em liquidação.

Por isso me vingo, lenta e friamente, como o ditado prediz e a prática confirma. No frio da madrugada, no detalhe dos segundos, saboreio cada instante desses minutos como bebesse água de cascata, sendo impossível não banhar-me. E com isso devolvo a mim mesmo o tempo de mim diluído em tudo.

Não quero a negação desse instante, que é e é! antes de tudo. Nesse momento, não quero outra angústia que não a de ser, como o poema quintaneiro, relativo à Quintana e agora ao quintal. É o meu gole d’água no escuro.

Abri essa fenda no tempo ferrenho, para me saber maleável e nobre, o que não é maleável deixa de ser nobre, e diferentemente da planta de Drummond, para saber os ventos que me visitam, ou quando sou suposto ouro.

Enfim, sobre a relva debruçado, quero saber da nudez de Nudez, poema d’A vida passada a limpo, que hoje me vem tal como em primeira leitura, abundante e profundo, caído como o orvalho das pétalas, despedaçando em mim a canção do que ri, amei e celebro, perfeita anulação do tempo em tempos vários, a modelar campinas no vazio da alma, que é apenas alma, e se dissolve.

Sair da versão mobile