A arte de negar – Por João Maria de Lima

A arte de negar - Foto: Getty Images

Um dos episódios bíblicos mais retratados na arte cristã é a negação de Pedro a Cristo, episódio descrito em todos os quatro Evangelhos do Novo Testamento. A cena em que Pedro chora ficou conhecida como o Arrependimento de Pedro. Negar um fato é mentir. E a mentira sempre esteve associada a um comportamento condenável.

Há um diálogo interessante na música brasileira entre Dom de iludir, de Caetano Veloso, e Pra que mentir, de Noel Rosa e Vadico. Nos versos destes, o sujeito masculino questiona a mulher em relação ao dom que ela tem de iludir e enganar. Na canção daquele, temos um sujeito feminino que responde aos argumentos do homem, a quem acusa de ter a verdade como dom de iludir. Não conseguiria – claro – esgotar aqui a interpretação das músicas, por isso recomendo a leitura das letras acompanhada da audição, com a atenção voltada para o jogo de palavras usado pelos compositores das duas belas canções, considerando o contexto em que foram escritas.

No sorrateiro e astuto tabuleiro da linguagem jurídica, se você precisar do recurso da negação, deverá saber expressá-lo corretamente. Afinal, nos debates jurídicos, muitas vezes, é indispensável que fatos, ideias ou argumentos sejam negados. É possível negar o fato, o direito ou as consequências jurídicas da soma de ambos. Mas esse é um assunto que detalho em minhas aulas de linguagem jurídica.

Na linguagem do dia a dia, os principais vocábulos que usamos para negar são os advérbios “não”, “nunca” e “jamais”, os pronomes “nada”, “ninguém” e “nenhum”, além da conjunção “nem”. Mas é preciso atentar a uma ideia importante: duas negativas não fazem uma afirmativa. Em uma mesma frase podemos juntar vários vocábulos de significação negativa, a fim de intensificar a negação: “O professor não entregou nada a ninguém”; “A plateia não entendeu nada”.

Não existe nada, em Português, que vede a dupla negativa. Não estou falando de ramos da Lógica Formal, em que duas negativas levam a uma afirmativa (na Matemática, menos com menos dá mais). A maioria das línguas multiplica, na mesma frase, vocábulos negativos que se reforçam. Construções como “Não devo nada a ninguém”, “Não quero saber de nada” são lidas em bons escritores, inclusive no maior de todos, Machado de Assis.

Ainda que seja possível, quando está na posição de sujeito da frase, encontrar o “nenhum” sem o “não” (“Nenhum político quis comentar o fato”), é muito comum que ao usarmos “nenhum”, a frase inclua antes um “não”: “Não observei nenhum problema na frase”.

No Português do Brasil, ocorre outro reforço da negativa, com o acréscimo de “não” no final da frase. Estamos mais do que familiarizados com “Ele não disse nada, não”. A questão é que esse modelo de frase, com “não” adicional, é típico da língua falada, não sendo adequado à lingua formal.

A dupla negativa a ser evitada é aquela cuja combinação de vários elementos negativos – principalmente prefixos – torna a leitura complexa. Permitam-me dizer que esse modelo é muito comum na linguagem jurídica, conforme este exemplo: “Não se pode negar que nenhuma ação involuntária não é incomum no crime de dano”. Como se vê, a frase demanda um esforço grande para ser interpretada.

Quem não perde a elegância é o pronome “algum”, que pode servir de substituto para “nenhum”, quando reforça o valor negativo da frase, desde que colocado após o substantivo a que se refere: “Goleiro algum defenderia aquela cobrança de pênalti”. Ele também poderá ser usado em expressões consagradas como “em hipótese alguma”, “de modo algum”, “em momento algum”, todas com valor negativo enfático.

Voltando às músicas, enquanto o homem fica perdendo tempo questionando em “pra que mentir”, a mulher desdenha dele (“não me venha falar”) e impõe-se em “dom de iludir”, mandando que ele desvie o olhar (“não me olhe como se a polícia andasse atrás de mim”). Parece que a mentira está na base da nossa inscrição constitutiva humana e das relações que estabelecemos: “Amamo-nos todos uns aos outros, e a mentira é o beijo que trocamos”, nos lembra Bernardo Soares, pseudônimo de Fernando Pessoa, em seu Livro do desassossego.

Por fim, podemos dizer que “É digna de fé esta palavra: se morremos com ele, também com ele viveremos; se resistimos com ele, também com ele reinaremos; se o negarmos, ele também nos negará; se lhe somos infiéis, ele, no entanto, permanece fiel, pois não pode negar-se a si mesmo” (2Tm 11-13).

João Maria de Lima é mestre em Letras e professor de língua portuguesa e redação há mais de 20 anos.

profjoaom@gmail.com

Crédito da Foto: Reprodução / Getty Images

 

 

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