A flexão de gênero é razão para muitos deslizes do idioma. Geralmente, a denominação de funções, cargos e títulos ocupados por mulheres é assunto polêmico, talvez porque houvesse pouca tradição desse fato no Brasil. Felizmente, isso tem mudado. Na contramão do avanço, recentemente, ensaiaram uma sofrível língua neutra, assunto sobre o qual falarei em outro momento.
Em geral, a flexão de gênero em português é feita com a troca de -o por -a, ou com o acréscimo da vogal -a no final da palavra: cozinheiro – cozinheira, doutor – doutora. Consideram-se masculinos os substantivos aos quais é possível antepor os artigos “o” ou “um” e as formas pronominais “meu”, “teu”, “seu”: o teatro, um cafezinho, meu pé. São femininos os substantivos diante dos quais é possível empregar os artigos “a” ou “uma” e as formas pronominais “minha”, “tua”, “sua”: a camisa, uma geladeira, sua freguesa.
Contudo, nem sempre a terminação -o ou -a indica o gênero masculino ou feminino: o grama, o telefonema, a comichão. Não se deve confundir o gênero da palavra com o sexo do ser, porque todos os substantivos possuem gênero, quer se refiram a seres, objetos ou coisas: o indivíduo, o remédio (gênero masculino); a pessoa, a música (gênero feminino). No entanto, “pai”, por exemplo, refere-se a ser humano do sexo masculino, e “mãe”, a ser humano do sexo feminino.
Começo a lista de pecados informando que as corporações militares brasileiras adotaram as formas compostas “sargento feminino”, “cabo feminino”, agindo da mesma forma em outros casos de patentes . Assim, evita-se que alguém se empolgue e fale “caba” por aí.
Palavra muito confundida, “agravante” complica a vida de muita gente. Outro dia, o comentarista de um telejornal falou: “O suspeito tem o agravante de não ser primário”. Nesse caso, não só o suspeito tem agravante, mas também o analista. O substantivo é feminino: a agravante.
Não importa se estivermos falando da nota musical ou do sentimento, “dó” é substantivo masculino. Mesmo assim, muita gente se complica e diz: “Tenho muita dó dos imigrantes”. Se tiver mesmo compaixão, que a expresse de forma adequada: Tenho muito dó dos imigrantes.
Que a gramática acompanha lentamente as mudanças da língua, todos sabemos. Mas vejam o caso de “soprano” e “contralto”, que se referem a vozes femininas no canto. Esta, à mais grave; aquela, à mais aguda. Ambos os substantivos são masculinos. Com o passar do tempo, os dicionários começaram a chamá-los de substantivos de dois gêneros, caso semelhante ao de diabete(s).
Em um consultório médico, ouvi que “as alergias quase sempre provocam muito comichão”. Confesso que senti uma comichão para ajustar a frase na hora. Passou porque me lembrei de postagem que li em um blog: “ressaca monstra”. A palavra “monstro”, após um substantivo, ao qual pode se ligar ou não por hífen, é invariável e funciona como determinante específico, com significado de “excepcionalmente grande”, como nos ensina o Dicionário Houaiss: recepção monstro, comícios-monstro.
É provável que nenhuma dessas escorregadas seja tão grave quanto alguém dizer que “a lotação foi assaltada antes de chegar ao local de destino”. Está claro, no contexto, que se trata de veículo de transporte coletivo. E nesse caso é substantivo masculino: o lotação. Nas outras situações, é palavra feminina: a lotação da sala; a lotação do servidor.
Se estamos em uma confraria, chamamos os integrantes masculinos de “confrades”. E as mulheres do grupo? São as “confreiras”. Depois da pandemia, espero que as confrarias retornem com seus membros devidamente identificados.
Todavia, talvez os vacilos mais comuns sejam dizer “a guaraná”, “o alface” e “a tomate”. “Guaraná”, em todas as acepções (refrigerante, xarope, semente), é substantivo masculino: o guaraná. Já “alface” é substantivo feminino, não importando o tipo. Quem sabe se não foi por influência da cebola que “o tomate” (masculino) seja confundido constantemente?
Consultar gramática e dicionário é a melhor forma para chegar ao uso correto das diversas flexões das palavras. Dizer que isso não tem importância é acomodar-se e conviver com o erro. “Aprendam também os nossos a destacar-se nas boas obras, para os casos de necessidade. Assim, não serão infrutuosos.” Tt 3,14
João Maria de Lima é mestre em Letras e professor de língua portuguesa e redação há mais de 20 anos.
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