Certa vez, um linguista afirmou, ironicamente, que as pessoas se dividiam em dois grupos básicos, quando o assunto é o domínio do idioma: os despreocupados e os aflitos. Os primeiros não têm consciência da linguagem que utilizam, ao passo que os outros, numa atenção constante, jamais deixam de se preocupar com a correção e a exatidão da língua que usam, consultando o dicionário e a gramática, em qualquer dúvida.
Ao escolher uma profissão dentro do mundo jurídico, a pessoa coloca-se automaticamente no grupo dos aflitos, pois a palavra é o principal recurso à disposição dos operadores do Direito. Ela é o único instrumento de que dispõem os atores da cena judiciária. Desse modo, não seria exagero afirmar que, sem linguagem, não há nem Justiça, nem Direito.
A linguagem em geral, e a jurídica em particular, deve ser precisa. É imperativo dominar os conceitos e os sentidos das palavras. Não há nenhuma razão prática que justifique a adoção do chamado “juridiquês”, aquele estilo vazio e pomposo, incompreensível tanto para leigos como para muitos especialistas.
Contudo, para bem e para mal, há uma linguagem própria. Juiz “incompetente” e juiz “suspeito” não são ofensas. “Penhora” não é o feminino de “penhor”. O “de cujus”, ao morrer, não deixou “de cuja” e “de cujinhos”. Logo, a imprecisão da linguagem pode significar negligência profissional e pôr a perder as melhores causas.
É fácil comprovar que algumas palavras de nosso idioma, apesar de serem acessíveis a um leitor comum, são utilizadas no universo jurídico com sentido peculiar. Isso significa que muitos termos utilizados em textos jurídicos, apesar de parecerem complexos e mesmo estranhos, têm função de definir conceitos do Direito de que aquele que redige não se pode afastar. Observe o exemplo: “O advogado mostrou que o homicídio simples não constitui crime hediondo e defendeu, em excelente tese, que mesmo o homicídio qualificado, por vezes, não deve ser visto como tal”.
É possível, sem conhecimento jurídico, entender o fragmento acima, mas, provavelmente, grande parte do conteúdo da mensagem será perdida. Quando o advogado cita o termo “hediondo”, refere-se à enumeração taxativa de lei específica e remete a todos os efeitos que ela determina. Esse vocabulário busca expor com precisão os conceitos do Direito, cuja complexidade é inevitável.
Essa linguagem não pode, entretanto, ficar prisioneira de expressões arcaicas e rebuscadas, que apenas prejudicam a boa comunicação. Respeita-se o aspecto técnico, mas condena-se veementemente a prolixidade e o rebuscamento de muitos profissionais da área. Linguagem confusa e arcaica contribui para a morosidade da justiça.
Lembrar que existe leitor interessado em entender o que está escrito o mais rápido possível e de forma precisa para dar sequência ao trabalho é função de quem escreve. Dessa forma, deve-se evitar textos com vocabulário inadequado, como: “Estribado no escólio do saudoso mestre baiano, o pedido contido na exordial não logrou agasalho” ou “V. Exª, data máxima vênia, não adentrou as entranhas meritórias doutrinárias e jurisprudenciais acopladas na inicial, que caracterizam, hialinamente, o dano sofrido”.
São vários os motivos que levam um texto ao fracasso, mas um dos mais importantes é o emprego de palavras difíceis e rebuscadas. Elas constituem um adereço de gosto duvidoso acrescido ao texto, truncam sua compreensão e tornam a leitura penosa. Caso alguém se depare com o vocábulo “parêmia” numa petição, vai ter duas opções: deixar o texto de lado e procurar um dicionário ou seguir a leitura, correndo o risco de não ter captado o sentido da frase. Em qualquer das situações, perderá, no mínimo, a concentração. A propósito: “parêmia” é o mesmo que “provérbio”.
Não se discute o fato de que a linguagem empregada no ambiente jurídico deve ser formal e culta. No entanto, isso não significa linguagem incompreensível. É de Artur Kudner o pensamento que pode ser facilmente aplicado no meio jurídico: “Aprende a usar, com grandeza, as palavras pequenas. Verás como é difícil fazê-lo, mas conseguirás dizer o que queres dizer. Entretanto, quando não souberes o que queres dizer, usa palavras grandes, que geralmente servem para enganar os pequenos”.
Muitas vezes, a preocupação com salamaleques é tão grande que se chega a esquecer conceitos básicos do nosso idioma, conforme ilustra o uso de “mesmo”, “trata-se” e “a partir de”, termos recorrentes nos textos jurídicos.
O uso de “mesmo” como pronome pessoal, substituindo um substantivo já expresso é um erro comum: “O desembargador recebeu o processo e analisará o mesmo”. Em tempo: O desembargador recebeu o processo e o analisará.
Não é possível, lógica e gramaticalmente, construção com o verbo “tratar-se” para coisas. “Trata-se” somente pode ter por sujeito um ente humano, em acepções específicas: “O caso trata-se de acusações”. (inadequado); “Aqui todos se tratam por você”; “Ele somente se trata com remédios caseiros”. Nos demais casos, “trata-se de” constrói-se impessoalmente: “Trata-se de processos novos”.
A expressão “a partir de” deve ser empregada em sentido temporal. Evitando-se empregá-la no sentido de “com base em”: O juiz proferiu a sentença a partir dos argumentos apresentados” (inadequado); “O juiz proferiu a sentença com base nos argumentos apresentados” (adequado).
Nunca é demais lembrar que a falsa erudição não ajuda em nada a conquistar a atenção do leitor, nem a convencê-lo. Ao contrário, serve para obscurecer ainda mais o texto, dificultando o entendimento. Por isso, “A justiça, só a justiça seguirás; para que vivas e possuas a terra que o Senhor, teu Deus, te dá”. (Dt 16,20).
João Maria de Lima é mestre em Letras e professor de língua portuguesa e redação há mais de 20 anos.
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