A pandemia, ocasionada pelo novo coronavírus, mudou a rotina de todo o mundo. A paralisação das atividades, o distanciamento social e as muitas preocupações advindas dessa nova ordem mundial afetou diretamente o psicológico das populações que ainda não sabem como lidar com o medo de contrair a covid-19 ou, ainda, de perder alguém próximo por causa dessa doença. Pesquisa desenvolvida pelo Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe/UFRN), divulgada pela Plos One, mostra que essa preocupação vai muito além e também está afetando os sonhos das pessoas.
Desenvolvido por um grupo de 13 pesquisadores, sob supervisão da psiquiatra e neurocientista Natalia Mota, o estudo mostra que os sonhos do período pandêmico são diferentes dos relatos dos sonhos anteriores à pandemia. Os pesquisadores perceberam que os sonhos nesse período têm maior proporção de palavras ligadas à “raiva” e à “tristeza” e maior semelhança a termos como “contaminação” e “limpeza”. Esses resultados corroboram a hipótese de que os sonhos pandêmicos refletem sofrimento mental, medo do contágio e mudanças importantes no cotidiano, hábitos que impactam diretamente a socialização.
Segundo a pesquisa, essas características parecem estar associadas ao sofrimento mental ligado a isolamento social, pois explicaram 40% da variância na subescala negativa, relacionado à socialização, de PANSS (Escala de Síndrome Positiva e Negativa), usada para medir a gravidade dos sintomas de pacientes com esquizofrenia.
Ao todo, 67 pessoas participaram das duas fases do estudo – antes e durante a covid-19. A aquisição de dados foi feita por um aplicativo para smartphone, chamado de InterviewerApp, desenvolvido pelo grupo para coletar relatos de memória de forma segura e remota. A aplicação executa uma rotina que captura os relatos dos participantes, os salva em arquivos de áudio e depois os envia para um servidor do Instituto do Cérebro, de onde são acessados pelos pesquisadores.
Foram utilizadas ainda ferramentas computacionais que medem a proporção de palavras emocionais as comparando a uma lista pré-estabelecida e já validada para calcular a proporção de conteúdo emocional. Da mesma forma, foi estimada a semelhança a termos específicos representando as palavras dos relatos de sonho em um espaço semântico. Ou seja, os pesquisadores criaram um mapa entre palavras constituindo a localização de cada vocábulo a partir da frequência de co-ocorrência das palavras nos mesmos contextos, gerando um grande corpus linguístico.
A pesquisa mostra que as mudanças nos sonhos estavam associadas ao grau de sofrimento mental experimentado pelos voluntários, principalmente com maior dificuldade em manter relações sociais satisfatórias com as medidas de isolamento social. “Dessa maneira, percebemos os sonhos como importante espelho desse mundo interno, demonstrando serem importante fonte de auto-conhecimento” disse Natalia Mota.
Natalia esclarece ainda que, como os principais resultados foram encontrados justamente no grupo de indivíduos que não relataram sofrimento mental previamente, é possível afirmar que o acompanhamento atento dos próprios sonhos, principalmente em momentos de estresse agudo, podem ser uma boa fonte de alerta de sofrimento mental, pois ajuda a advertir sobre riscos. “Ao final também podemos perceber que os voluntários auto-avaliaram o processo de observar e compartilhar os sonhos como benéfico, trazendo mais sentimentos como felicidade, altruísmo e criatividade para o seu cotidiano”, completa.
Sonho e realidade
De acordo com Natalia Mota, recentes teorias das neurociências atribuem ao sonhar uma função de regulação de emoções. Seria um mecanismo análogo à digestão, nesse caso, de memórias. Esse processo extrai das lembranças do cotidiano o aprendizado para ser retido, mas atenua as emoções, principalmente as muito negativas, nos permitindo lembrar do evento sem sofrer, como se estivesse acontecendo naquele momento, o que ajuda a superar traumas.
Outras teorias observam o papel dos sonhos como um centro de realidade virtual personalizado com suas próprias memórias, oportunizando treino específico e seguro para ameaças prováveis do dia seguinte. Da mesma forma, os sonhos funcionariam também como um simulador para treinar habilidades sociais, visto a grande importância da socialização para a nossa espécie.
Fonte: Agecom/UFRN