A lição das canções – Por João Maria de Lima

A lição das canções Foto: iStock

Marcadas pelo uso copioso de metáforas, as letras de Paulinho da Viola nos levam por percursos que falam sobre o tempo e a vida cotidiana; o tempo de longa duração e o tempo do instante. Mas a água e seus signos correlacionados também  são presenças fortes e enunciadoras de sentidos em Paulinho. Valho-me de um conhecido verso desse grande compositor (“Não sou eu quem me navega/Quem me navega é o mar”) para chamar a atenção de um caso instigante de concordância verbal. Refiro-me à relação do pronome relativo “quem” com os verbos.

Certamente, a frase “Não sou eu quem me navega” já foi ouvida por todos nós. Para pensar na concordância verbal, há dois verbos: “sou” e “navega”. O primeiro (sou) está na primeira pessoa do singular e concorda com o pronome “eu”; o segundo (navega) está na terceira pessoa do singular e concorda com o pronome “quem”. Se invertermos a ordem, talvez soe melhor a frase: “Quem me navega não sou eu”. Está tão correta quanto “Não sou eu quem me navega”.

A explicação é bem simples. O pronome “quem” é de terceira pessoa. Basta verificar como se conjugam os verbos nas perguntas simples, como em “Quem fez?”, “Quem perguntou?” Contudo a concordância  também pode ser feita com o termo antecedente. Isso explica a frase “Hoje sou eu quem pago”, na qual a forma “pago” concorda com o antecedente “eu”.  Na inesquecível “Detalhes”, Roberto e Erasmo acertam em cheio na concordância quando dizem “Mas na moldura não sou eu quem lhe sorri”. “Sou” concorda com “eu”; “sorri” concorda com “quem”.

Outro exemplo que intriga olhos e ouvidos: “Não foram eles quem pintou a parede”. O verbo “pintar” concorda com o pronome “quem” (quem pintou), e o verbo “ser” concorda com o pronome “eles” (foram eles). Pode-se dizer o mesmo em relação a “Quem paga somos nós”, que é correta e ninguém acha estranha. Mas, quando se diz “Somos nós quem paga”, narizes se torcem. Porém a frase é corretíssima.

Mas, ao contrário de Paulinho, quem comete um pecado capital, quando o assunto é esse tipo de concordância, é o grande poeta Paulo César Pinheiro, autor da letra “Última forma”, uma linda canção composta com Baden Powell, que diz assim: “É, como eu falei/Não ia durar/Eu bem que avisei, pois é/Vai desmoronar/Hoje ou amanhã/Um vai se curvar?/E graças a Deus/ Não vai ser eu quem vai mudar”.  O compositor talvez tenha se confundido com a presença do “quem”, com o qual concorda o segundo “vai”, neste último verso. Dessa forma, errou ao usar o primeiro “vai”, que deveria ser “vou”, concordando com o pronome “eu”. Vamos corrigir: “Não vou ser eu quem vai mudar”.

E, por falar em deslize em letra de música, não podemos nos esquecer de “Pingos de amor”, um clássico da MPB da década de 1970, que o cantor e compositor pernambucano Paulo Diniz lançou em parceria com Odibar. A canção foi revitalizada pelo grupo Kid Abelha em gravação de 2000.  Diz a letra: “Vamos ser/Outra vez nós dois/Vai chover/Pingos de amor”. O autor confundiu a concordância dos verbos impessoais. Isso porque os verbos que indicam fenômeno da natureza são impessoais (não têm sujeito) e devem ficar na 3ª pessoa do singular, desde que não estejam em sentido figurado (como na música).  Nesse caso, serão flexionados normalmente. Daí a razão da versão correta ser: “Vão chover/Pingos de amor”. “Então, o que concluir? Orarei com o espírito, e orarei também com o meu entendimento; cantarei com o espírito e cantarei com  também com o meu entendimento.” (1Cor 14,15)

João Maria de Lima é mestre em Letras e professor de língua portuguesa e redação há mais de 20 anos.

profjoaom@gmail.com

Crédito da Foto: iStock

 

 

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