Do fundo do corredor escuro vinha o som. Sabia que era ali que ele se escondia, atrás daquela parede, todas as madrugadas, a poucos metros de seu quarto. Se não era uma criança desobediente, por que dos murmúrios sempre à espreita? São esses filmes que você assiste, falou o pai. “Você já está bem grandinha. Monstros não existem.” A mãe religiosa ensinou-lhe logo a rezar antes de dormir. Entregou-lhe um terço. Assim ficaria protegida. Mas os sons insistiam. Respiração pesada. De bicho. Dizem que é embaixo da cama que ele mora. Papai do Céu sabe quando mentimos. Talvez fosse porque havia atolado o dedo no bolo de chocolate e não dissera a ninguém. Mas se de repente não veio por sua conta, mas por conta de seus pais? A mãe nunca mais fora a missa aos domingos. O pai vivia bêbado todos os fins de semana. Falava sempre palavrão. Não pregou o olho. Se os anjos guardam o sono e o sonho das crianças, como a mãe lhe disse certa vez, quem cuida do sono dos adultos? Então saiu na ponta dos pés.
Não conseguia identificar mais do que grunhidos à medida que se aproximava. Uma respiração forte, assim como um claro arrastar de coisas. Talvez fosse ele em todo o seu esplendor de bicho – antes retraído embaixo da cama na escuridão – e que agora se debatia, se alargava, e o quarto com ele. Tremeu ante a imagem que fez em sua cabeça. Quis voltar. Mas pensou em seus pais debaixo de presas, e daí veio a coragem que era mais um desespero.
Testou a maçaneta. Estava aberta.Colou o olho pela fresta e o viu. Da penumbra ele também a observou. Feito de vários braços e pernas. O monstro. Não estava enganada.
Eles existem.