Nem todas as sociedades do mundo têm escrita, mas todas fazem uso de uma língua oral. Nas sociedades letradas, mesmo as pessoas consideradas analfabetas lidam de alguma forma com a escrita dos muros, dos outdoors, dos rótulos de produtos, dos folhetos, interpretando de alguma forma esses símbolos escritos. Nesse sentido, elas podem ser consideradas indiretamente letradas.
A escrita não é um mero registro da fala, pois surgiu para expressar diferentes necessidades comunicativas e cognitivas dos seres humanos. Alguns imaginam que escrever é simplesmente transpor para o papel, sob a forma de letras, os enunciados da fala. Essa ideia se apoia no fato de que a base do sistema de escrita que utilizamos é alfabética: usamos sinais gráficos (letras) para representar unidades de som menores do que as sílabas (fonemas). Esse procedimento permite representar, na escrita, qualquer palavra da língua, mesmo as que inventamos.
Cada língua faz uso de um número limitado de sons, entre aqueles que o aparelho fonador humano é capaz de produzir. Outro ponto importante é que não há uma correspondência absoluta entre o número de fonemas das palavras e o número de letras usadas na escrita alfabética dessas mesmas palavras, ou seja, uma palavra pode ter sete letras, mas 6 fonemas, como é o caso de “palhaço”. O uso de um sistema alfabético de escrita costuma ser regulado por uma ortografia, que estabelece as normas para utilização das letras na representação dos fonemas das diversas palavras da língua.
O fonema /s/ pode ser representado de várias maneiras gráficas na língua portuguesa, eis algumas: sapato, caça, massa, máximo, nascer, nasça. Já o fonema /z/ é representado pela letra “s” na palavra “casa”. Essa variedade se dá pelo fato de nossa ortografia refletir as diferentes origens dos vocábulos e as diferentes etapas de sua evolução, algo normal entre as línguas ocidentais.
É comum o pensamento de que a letra “s” só tem som de /z/ entre duas vogais. Também há estranheza na pronúncia de “obséquio” e dúvida no som de “subsídio”. Primeiro é preciso entender que se trata de um princípio geral de nosso sistema ortográfico que o “s” depois de consoante tem sempre o som de /s/: observar, subsolo, absoluto, imprensa, lapso. Nessa posição, o “s” só vai ter o som de /z/ em obséquio (e derivados) e nos vocábulos formados com “trans-”: transa, transatlântico, trânsito, transição. No entanto, vale notar que isso só não acontece quando o vocábulo originário começa por /s/: transecular (trans+secular), transexual (trans+sexual). Em todos esses fica mantida a pronúncia /s/.
“Obséquio” e “transar” são idiossincrasias do nosso idioma. Cada língua tem suas manias. Além desses casos, há outros que começam a chamar a atenção. Talvez o mais evidente seja “subsídio”. A pronúncia do “s” em subsolo, subsequente e subserviente aponta para a pronúncia /subcídio/. É assim que a gramática recomenda. É impossível negar, contudo, que a tendência natural dos falantes é dizer /subzídio/, assim como já tendem a pronunciar como /z/ o “s” de subsistência, subsistir, contrariando a norma, que manda seguir a pronúncia de assistência e assistir. Aliás, alguns dicionários já aceitam as duas, em uma demonstração clara da força do uso linguístico em detrimento da regra gramatical.
Manuel Bandeira, poeta modernista, deixou marcado, na mente de todos os seus leitores, um lugar chamado Pasárgada, lendária cidade de Ciro, fundada quase quinhentos anos antes de Cristo para ser a capital do Império Persa. Até hoje suas ruínas podem ser visitadas, no Irã, a uns setenta quilômetros da não menos famosa Persépolis. A história imortalizou a grandeza de Pasárgada, com seus imensos monumentos espalhados por belos terraços e verdes jardins. Contudo, ainda é comum fãs desse poema desconhecerem que a correta pronúncia da palavra é /pazárgada/. O próprio Manuel Bandeira chegou a gravar em disco o poema, para que não pairasse dúvida. Assim, podemos dizer “Com as palavras da tua boca te enredaste e ficaste preso por teus próprios discursos”. (Pr 6,2)
João Maria de Lima é mestre em Letras e professor de língua portuguesa e redação há mais de 20 anos.
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