Grafias intrigantes – Por João Maria de Lima

Grafias intrigantes - Foto: Reprodução / Certaspalavras.pt

A língua é o elemento mais importante na construção da cultura e da identidade de um povo. No Brasil, a língua oficial e também a mais falada é o português. Mas ela não é a única: cerca de 180 línguas indígenas são usadas em território brasileiro, além de outras línguas trazidas por imigrantes e da língua brasileira de sinais (Libras), empregada por surdos-mudos.

Assim como o espanhol, o italiano ou o francês, o português é uma língua neolatina, isto é, uma língua originária do latim. Ele foi trazido ao Brasil pelos colonizadores portugueses, mas sua adoção não foi imediata nem homogênea. No período colonial, a maior parte dos brasileiros falava a chamada língua geral, uma mistura de português e línguas indígenas. O português propriamente dito ficava reservado para assuntos jurídicos ou administrativos.

Ao longo dos séculos XVII e XVIII, a Coroa portuguesa tomou medidas para reprimir o uso das línguas indígenas e impor o uso e ensino do português. Com isso, a língua geral acabou abandonada e o português tornou-se nosso idioma nacional. Hoje somos o país com o maior número de falantes da língua portuguesa. Ela também é falada em Portugal, Moçambique, Angola, Cabo Verde, São Tomé e Princípe, Guiné-Bissau e Timor Leste.

Affonso Romano de Sant’Anna diz, em um de seus poemas, que há vários modos de matar um homem: com o tiro, a fome, a espada ou com a palavra envenenada. Isso é fato. Uma palavra grafada errada, por exemplo, põe em dúvida a reputação de qualquer cidadão.

Confundir o “eminente” ministro com o “iminente” ministro pode gerar uma situação embaraçosa entre ambos. A substituição pelo antônimo desfaz uma das dúvidas  mais preliminares em língua portuguesa, o uso de “mal” e “mau”. Este é contrário de “bom”; aquele, de “bem”.

Caso intrigante surge na dúvida entre “ch” ou “x”. Reza a lenda que, após “en”, deve-se dar vez ao “x”: enxada, enxoval, enxame, enxaqueca. Contudo, outra regra básica se sobrepõe nessas situações. A palavra derivada mantém-se fiel à primitiva, ou seja: filho de peixe peixinho é. Dessa forma, “cheio” deu “encher” e “enchente”; “charco”, “encharcado”; “chapéu”, “enchapelar”.

Quando a dúvida for entre “s” e “z”, uma boa dica para quem não tem um dicionário por perto, na hora de escrever, é observar se a palavra deriva de adjetivo ou de substantivo. Se vem de adjetivo, usa-se o “z”: macio (maciez); insensato (insensatez); frígido (frigidez). Se vem de substantivo, dê vez ao “s”: Japão (japonês); campo (camponês).

Não menos interessante é o caso do par “erva/herbívoro”. Nessa relação, o “h” não mantém amistosidade com o “v”, de modo que, se um estiver na palavra, o outro sai. A explicação é que o radical latino “herb-” evoluiu, dentro do português, para “erv-” (o “h” desapareceu e o “b”, por regras de fonética histórica, passou a “v”. No entanto, ainda temos vocábulos que derivam do radical antigo (herbívoro, herbáceo) e vocábulos que derivam do moderno (erva, ervaçal). Situação semelhante ocorre com “hibernar”, “hibernação”; “inverno”, “invernada”.

Vestígios de diferentes momentos na história do nosso léxico talvez expliquem algumas situações instigantes em nossa língua. É o caso de “úmido/umedecido”. O adjetivo “úmido” produz derivados como “umidade” e “umidificar”, mas deriva de “umedecer”, que tem sílaba “me” em todas as formas flexionadas, inclusive no particípio “umedecido”, irmão de “umectar”, “umectante”. Não é novidade ocorrerem variações no radical de uma família vocabular: a lágrima sai pelo canal lacrimal, o movimento da roda é rotativo, a higiene da boca é bucal, e assim por diante.

Algo simples, mas muito importante  de destacar, é que nenhum vocábulo pode ter, ao mesmo tempo, acento gráfico e o elemento “-mente”. Isto é: sempre que esse sufixo é acrescentado a um vocábulo, a nova sílaba tônica passa a ser  “/men/”, fazendo com que o acento primitivo desapareça: (somente); rápido (rapidamente); espontâneo (espontaneamente).

“Ora, irmãos, se eu for até vós falando em línguas, em que vos serei útil, se eu não falar por meio de revelação, de conhecimento, de profecia, de ensinamento?” (1Cor 14,6)

João Maria de Lima é mestre em Letras e professor de língua portuguesa e redação há mais de 20 anos.

profjoaom@gmail.com

Crédito da Foto: Reprodução / Certaspalavras.pt

 

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