Muitas são as confusões ocasionadas pelo uso inadequado dos pronomes, que são palavras que substituem ou acompanham outras, quase sempre substantivos. Para citar alguns casos e cometá-los, fiz pequeno recorte no cancioneiro popular brasileiro.
Primeiro, vale dizer que algumas palavras e locuções como você, senhor, senhora, Vossa Excelência valem por pronomes pessoais e são chamadas de pronomes de tratamento. Elas se referem à 2a pessoa do discurso, mas levam os verbos e os pronomes oblíquos para a 3a pessoa: “Você merece essa vaga”.
O pronome “seu”, por exemplo, tem presença constante na música, pois o narrador do texto quase sempre “dialoga” com alguém, e é mais fácil usar o pronome “você”, em vez de “tu”, não é mesmo? Em “Cegos do castelo”, canção de Nando Reis, temos: “E se você quiser me achar,/Se você trouxer o SEU lar,/Eu vou cuidar,/Eu cuidarei dele,/Eu vou cuidar/Do SEU jardim.” Claramente, o pronome “seu” se refere ao interlocutor, isto é, à pessoa com quem o emissor fala. O “você” deixa isso óbvio.
Já em “Regra três”, dos geniais Vinicius de Moraes e Toquinho, o pronome “seu” refere-se a “ela” (“ela chorou”), e os momentos felizes deixaram raízes no penar “dela”: “Da primeira vez/Ela chorou,/mas resolveu ficar./É que os momentos felizes/Tinham deixado raízes/No SEU penar.”
A falta de uniformidade de tratamento, que é o fato de usar dois pronomes diferentes para se referir à mesma pessoa, como em: “Linda,/Só VOCÊ me FASCINA/TE desejo muito além do prazer/VISTA meu futuro em TEU corpo/E me AMA como eu amo VOCÊ”, é outro problema muito comum ocasionado pelo uso inadequado do pronome. Evidentemente, em textos poéticos e/ou literários, temos a licença poética, que dá certa liberdade aos versos e causa uma aproximação do texto/música com o leitor/ouvinte. Neste caso específico, vimos uma oscilação entre “tu” e “você”, o que levou o verbo à 2ª e à 3ª pessoa do discurso.
Em “De volta pro meu aconchego”, Dominguinhos e Nando Cordel, dois mestres nordestinos, também misturam os pronomes “você” e “tu”, o que, em um texto formal, seria corrigido. Contudo, ouvindo a canção, nos deliciamos com a musicalidade: “Que bom poder estar CONTIGO de novo/roçando TEU corpo e beijando VOCÊ/pra mim TU és a estrela mais linda…”
Diante desse cenário, entre a gramática e a musicalidade, poucos compositores se arriscariam a fazer como o mestre Pixinguinha, que compôs divinamente uma canção referindo-se a alguém usando apenas o pronome da segunda pessoa do singular: “TU és divina e graciosa/Estátua majestosa do amor/Por Deus esculturada (…)TEU coração junto ao meu lanceado/Pregado e crucificado sobre a rósea cruz/ Do arfante peito TEU/TU és a forma ideal/Estátua magistral. Oh, alma perenal(…)/TU és de Deus a soberana flor/TU és de Deus a criação/Que em todo coração sepultas um amor/(…)És láctea estrela/És mãe da realeza/És tudo enfim que tem de belo…”
O fato é que, quando o assunto é música, de nada adianta ser rigorosamente gramatical e não embalar uma boa canção. O bom compositor sabe equilibrar essa medida. Noel Rosa, em “Sem tradução”, criticando a mudança de comportamentos e de hábitos dos brasileiros com relação ao samba, disse: “Essa gente hoje em dia que tem a mania da exibição/ Não entende que o samba não tem tradução no idioma francês/Tudo aquilo que o malandro pronuncia/Com voz macia é brasileiro, já passou de português/Amor lá no morro é amor pra chuchu/As rimas do samba não são I love you/E esse negócio de alô, alô boy e alô Johnny/Só pode ser conversa de telefone”. Por isso, “É melhor ser repreendido pelo sábio do que alegrar-se com o canto dos insensatos.” (Ecl 7,5)
João Maria de Lima é mestre em Letras e professor de língua portuguesa e redação há mais de 20 anos.
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