A regência da Dona Crase – Por João Maria de Lima

A regência da Dona Crase - Foto: Reprodução / Thiago Bertozo

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A relação de dependência entre os termos e seus complementos é chamada de regência. Alguns substantivos e advérbios precisam ser acompanhados de outras palavras para que tenham sentido completo; daí o nome regência nominal. Há também termos que completam verbos, e, nesse caso, ocorre a regência verbal. Portanto, há termos regentes ou subordinantes, que são aqueles que exigem um complemento; e termos regidos ou subordinados, que completam sua significação.

É nesse cenário de reis e súditos que vive a Dona Crase, palavra que vem do grego e que representa a fusão da preposição a com o artigo definido feminino a, ou com determinados pronomes iniciados pela vogal a. Na escrita, é marcada pelo acento grave (à).

Saber aplicar o acento grave é prezar pela clareza e pelo bom texto. Na maioria das vezes, ela, a crase, nos torna mais civilizados e nos deixa seguidores dos bons costumes. Afinal, é melhor sentar-se à mesa do que na mesa; esperar à janela em vez de na janela. Bater à porta é educado, bater a porta ou na porta é deselegante. Subir à serra é bem menos cansativo do que subir a serra.

A crase retira a frase das trevas, clareia o sentido. Como a abelha-rainha da canção

Mel, de Caetano Veloso, faz-nos instrumento do seu prazer e de sua glória, pois livre à direita no trânsito nos faz entender que podemos passar pela direita; enquanto livre a direita diz que devemos fazer exatamente o contrário. Além disso, chegar à noite (referência a alguém) é bem diferente de chegar a noite (anoitecer).

O sinal indicador da crase, conhecido como acento grave, dá-nos outras lições. Um deles é o da fidelidade. Para manter o paralelismo, formam-se casaizinhos tão unidos que o que acontece com um acontece com o outro. Trocando em miúdos: se um dos parceiros se apresenta sem artigo, o outro segue o mesmo caminho. Se, ao contrário, se exibe devidamente acompanhado, o outro vai atrás. Se informamos que As aulas ocorrem da (de+a) segunda à (a+a) sexta-feira, a preposição antes de segunda vem acompanhada do artigo, o que deve ocorrer, também, antes de sexta-feira. O sinal de crase mantém essa fidelidade. Se não ocorre em um, não ocorre em outro: As aulas ocorrem de segunda a sexta-feira

Outra virtude da crase: faz-nos chegar na hora certa. Basta que saibamos trocar qualquer horário por meio-dia e observarmos se vai ocorrer a expressão ao meio-dia. Em caso afirmativo, o acento grave estará presente. Cheguei às 8 horas recebe o sinal de crase porque, se substituirmos 8 horas por meio-dia, teremos: Cheguei ao meio-dia. Já em Estou aqui desde as 8 horas o acento some, pois Estou aqui desde o meio-dia. 

Grande contribuição ao sentido advém da relação crase verbos dinâmicos. Para entender melhor, vamos parafrasear Gonçalves Dias: Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá; venho de não craseia, venho da crase há. Assim fica fácil: Vou à Bahia (com acento de crase), porque Venho da Bahia; Vou a Natal (sem acento) porque Venho de Natal. Se qualificarmos o lugar, mantém-se a dica: Vou à Natal de Cascudo; Venho da Natal de Cascudo. 

Mas não se pode tratar desse assunto sem considerar algumas exigências da todo-poderosa em questão. A crase não ocorre diante de verbos (Estou disposto a aprender), de palavras masculinas (Vendas a prazo) e quando a preposição estiver no singular seguida de um substantivo no plural (Sempre vamos a festas do clube).

Respeitosa, a crase se rende aos pronomes de tratamento senhora  e senhorita: Dirigi-me à senhora; não, à senhorita; mas dispensa os Vossas (Excelência, Senhoria e Majestade) tão formais e nem sempre sinceros. Quanto ao distanciamento em voga nos dias atuais, ela só vai na boa, se a distância estiver especificada: O policial ficou a distância, mas O policial ficou à distância de 10 metros. 

É claro que a história do reinado da Dona Crase ainda está sendo contada e, a qualquer momento, podemos estar sujeitos a dúvidas regenciais. Contudo, se quisermos escrever bem, prezando pela clareza, devemos fazer a corte a ela, pois  E, se um reino se dividir contra si mesmo, tal reino não pode subsistir (Mc 3,24).

João Maria de Lima é mestre em Letras e professor de língua portuguesa e redação há mais de 20 anos.

profjoaom@gmail.com

Crédito da Foto:  Reprodução / Thiago Bertozo

 

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