Desde a década de 1950 a ciência vem demonstrando que o sono REM, Movimento Rápido dos Olhos na sigla em inglês, é importante para diversas funções fisiológicas e cognitivas. Essa é também a fase com maior predominância dos sonhos mais vívidos, bizarros e emocionais. Embora a complexidade estrutural dos relatos oníricos já seja conhecida há décadas, um grupo de pesquisadores do Instituto do Cérebro (ICe) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), liderado pelo neurocientista Sidarta Ribeiro, foi o primeiro a provar que o sono REM é o que apresenta maior conectividade de palavras, criando narrativas mais complexas.
Estudos clássicos dividem o ciclo do sono em pelo menos quatro estágios. O inicial N1 ocorre, normalmente, pouco depois de fechar os olhos, sendo caracterizado por sonhos muito breves. Seguem-se os estágios N2 e N3, durante os quais se registram diminuição dos ritmos cardíacos e respiratórios, relaxamento dos músculos e diminuição da temperatura. É possível obter relatos de sonhos em todos esses estágios, mas é durante o sono REM que se registra a maior e mais intensa atividade onírica. A despeito de décadas de estudos sobre inúmeros aspectos dos relatos de sonhos, faltava ainda uma comparação quantitativa da organização estrutural, palavra a palavra, dos relatos durante diferentes fases do sono.
Utilizando a teoria de grafos, o estudo da UFRN analisou 133 relatórios de sonhos obtidos de 20 participantes. O estudo consistiu em despertar os voluntários em diferentes fases do sono, principalmente nos estágios REM, onde ocorre maior registro de sonhos, e N2, que não produz tantos relatos oníricos.
De acordo com Joshua Martin, primeiro autor do estudo, a análise de relatórios de sonhos quase sempre se baseou exclusivamente em juízos humanos, que podem consumir muito tempo e introduzir problemas de vieses subjetivos. O estudo da UFRN demonstra que a estrutura dos relatos orais é informativa das principais variáveis da pesquisa onírica, como o estágio do sono, em que o relato onírico foi obtido, e os aspectos de sua complexidade narrativa. “Esses resultados são promissores, pois indicam que métodos computacionais podem ser aplicados aos estudos do estado onírico”, afirma Joshua, que realizou o estudo como dissertação de mestrado defendida junto ao programa de Psicobiologia da UFRN e, atualmente, cursa doutorado na Charité – Universitätsmedizin Berlin (Alemanha) em conjunto com o Berlin School of Mind and Brain.
A análise estrutural desses relatos de sonhos procurou identificar onde ocorre maior conexão e complexidade, considerando a trajetória das palavras apresentadas nos grafos. “Quando fazemos comparação com medidas clássicas de sonhos, vemos que o que é considerado sonho de maior complexidade, em termos de informação e de narrativa, é exatamente aquele que tem maior conectividade”, afirmou a pós-doutoranda Natalia Mota, uma das autoras do estudo.
Por ser o primeiro estudo a demonstrar que os relatos oníricos obtidos durante o sono REM possuem maior conexão estrutural em comparação com os relatos obtidos durante o estágio N2, o trabalho contribui para diferenciar os relatos de sonho obtidos durante o sono REM e o sono não-REM. “É também o primeiro estudo a demonstrar que aspectos da teoria de grafos podem capturar características subjacentes da complexidade dos sonhos, de modo que sonhos mais complexos estão associados a uma maior conexão e estruturas de grafo menos aleatórias”, reforça Joshua.
Na visão dos pesquisadores, o estudo oferece ainda um método interessante para estudo de relato de sonhos já que caracteriza, de uma maneira mais precisa e automatizada, observar essas diferenças de estado mental em sujeitos saudáveis em diferentes estados de consciência fisiológica do sono. Joshua Martin aponta à análise de grafos como uma alternativa automatizada e economicamente promissora aos métodos existentes no estudo do sonho. Sidarta Ribeiro concorda com Joshua, seu ex-orientando, e confirma que o trabalho abre portas para a investigação quantitativa dos relatos oníricos, aumentando a acurácia e a velocidade das análises.
“Outra relevância é que os resultados sugerem que este método, simples e não invasivo, pode nos informar objetivamente o grau da complexidade do funcionamento do nosso cérebro. Assim, uma análise longitudinal pode nos ajudar a detectar precocemente doenças neurodegenerativas”, reforça John Fontenele Araújo, que também assina a pesquisa e foi co-oriantador do trabalho.
Publicado na revista Plos One, da Public Library of Science, o estudo foi desenvolvido em cooperação com Danyal Wainstein Andriano e Mark Solms, da Universidade da Cidade do Cabo (Cidade do Cabo, África do Sul). Assinam ainda o artigo o pesquisador da UFRN Sergio Mota-Rolim. Declara Sidarta Ribeiro: “Estou muito satisfeito com a frutífera colaboração internacional sul-sul que o Joshua criou. Sua presença inteligente, bem humorada e muito eficaz na UFRN foi um presente da África do Sul para o Brasil”, declarou Sidarta.
Futuro
Os pesquisadores acreditam que fases futuras dessa pesquisa podem incorporar relatórios de sonhos coletados nos estágios restantes do sono não REM (N1 e N3), bem como relatos de vigília para uma comparação adequada. “Isso pode nos ajudar a caracterizar como a estrutura do relato é alterada ao longo do ciclo de vigília em relação aos aspectos do funcionamento mental subjacente e pode controlar adicionalmente a influência potencial de confusão da inércia do sono em nossos resultados”, disse Joshua.
Para ele, um acompanhamento clínico potencial pode envolver a avaliação de como a estrutura de grafos dos relatos de sonhos é afetada em pacientes com distúrbios do sono REM e não REM, ou de acordo com a administração de medicamentos psiquiátricos.
Fonte: ICe/UFRN