Antes do final de agosto, o comitê científico do Rio Grande do Norte não terá condições de apontar uma possível data para retorno das aulas presenciais de forma segura no Rio Grande do Norte. Isso é o que garante a médica infectologista e professora da UFRN, Marise Reis, que faz parte do grupo de pesquisadores que assessora o governo do estado nas tomadas de decisão sobre a pandemia da Covid-19 e recomendou o adiamento da volta às aulas presenciais, que era prevista para agosto. A decisão final sobre o processo de reabertura das atividades, no entanto, cabe à administração estadual.
Para a profissional, além de as escolas serem um ambiente com “alto risco de infecção”, o estado não tem capacidade atual para atender a uma possível demanda de leitos para crianças com casos graves de Covid-19. Por mais que sejam raros, os casos poderiam ser mais numerosos com o retorno de cerca de 800 mil alunos à sala de aula, somente no ensino básico. “Ao trazer esse contingente grande para exposição ao vírus, eu vou trazer um evento que é raro. Mas na hora que eu tenho um grande número exposto, eu posso ter um número razoável de casos que precisem de suporte de saúde”, considerou.
A volta às aulas presenciais após praticamente cinco meses de suspensão, foi um dos temas mais comentados, ao longo da semana, no estado. Na quarta-feira (29), o governo do estado apontou o adiamento do prazo previsto inicialmente para o dia 17 de agosto. No mesmo dia, a Prefeitura de Natal marcou data para a volta as aulas e depois recuou da decisão. No dia seguinte, o comitê científico apresentou o parecer contrário à reabertura, após reunião realizada também na quarta (29).
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Porque o comitê científico defende a manutenção da suspensão das aulas?
O comitê analisou isso com muito cuidado e a nossa grande preocupação para o retorno das aulas, neste momento, é que nós estamos fazendo uma retomada gradativa das atividades econômicas, sociais e que vai, portanto, expor pessoas que estiveram protegidas ao risco de contaminação com o vírus. Essa retomada iniciou tem cerca de um mês. Com isso, nós tivemos um contingente de pessoas expostas, porque é isso: o vírus está circulando na comunidade e à medida que me exponho, corro risco de me contaminar. O que a gente observa ao longo desse mês é uma oscilação na taxa de transmissibilidade do vírus. Nós tínhamos taxas inferiores a 1 durante mais de três semanas, antes da abertura, e após 1º de julho essa taxa começou a subir acima de 1 em várias regiões, em vários municípios do Rio Grande do Norte. Quando a gente observou essa variação da taxa, dissemos ‘opa’. Vimos que tinha alguma coisa errada, porque a taxa de transmissibilidade significa a capacidade do vírus de se transmitir de uma pessoa para outra.
Mesmo identificando hoje uma oferta confortável de leitos de terapia intensiva e clínicos para Covid, que é outro fator importante – setor de saúde está em condições adequadas de cuidar das pessoas – a gente entende que abrir escolas agora significa colocar na rua um grande contingente de pessoas, que equivalem a mais de 800 mil pessoas, se considerar só o ensino básico nas redes pública e privada. São mais de 800 mil pessoas em circuito, porque também entram os pais, os motoristas de vans, os professores. Então, a gente entendeu que, com essa oscilação da Rt, e por estarmos no processo de retomada, é mais prudente aguardar um pouco mais. Porque essas pessoas são efetivamente os que fizeram o isolamento social. Quem verdadeiramente fez o isolamento social foram os estudantes, sejam crianças, adolescentes, ou adultos, porque as escolas fecharam, as áreas sociais de convivência fecharam, então eles realmente ficaram em casa. Por isso a gente entendeu que esse momento não era o adequado, ainda.
As escolas particulares argumentam que estão em uma situação preocupante do ponto de vista econômico. É claro que vocês, do ponto de vista científico, não estão avaliando esse quesito. Mas, como elas têm uma estrutura melhor, seria possível, hoje, uma liberação apenas das escolas privadas?
Eu diria que as escolas privadas deveriam ser as últimas a se preocuparem com retorno de aula presencial, porque elas têm estrutura e seus alunos têm capacidade para uso do ensino remoto. A escola privada verdadeiramente deveria ser a que neste momento deveria se preocupar, dialogar com as famílias e com a sociedade, sobre a possibilidade de manter o ensino remoto. Elas têm condição para isso, diferente da pública, que não tem. Na pública, é complicado o ensino remoto, porque as crianças e jovens pobres não têm esse recurso. Veja que a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) já assumiu que esse semestre vai ser remoto. As escolas do mundo inteiro, as universidades do mundo inteiro, já assumiram que esse ano vai ser remoto, e talvez até mais um pouco, no ano que vem. Então eu acho que as escolas privadas precisam criar um diálogo com seus usuários sobre como garantir a manutenção da escola de qualidade, com ensino remoto, nesse cenário atípico.
A gente tem que entender isso. Nós não estamos em tempos normais. É claro que o ensino presencial é muito melhor para a formação da pessoa, do jovem. As relações pessoais são muito importantes, o convívio na escola, mas esse momento é inseguro, porque a escola, por outro lado, é um ambiente de alto risco de transmissão. É só lembrar, nas épocas normais das gripes sazonais, que chega um doente na escola e metade da turma está doente em dez dias. É muito comum isso, é normal, porque as pessoas estão mais próximas. E quando é possível abrir? É possível abrir na hora que estivermos em uma condição da epidemia mais estável e que eu não tenha risco de adoecimento de um grande contingente populacional em espaço muito curto de tempo. Senão a gente volta lá para o início de maio, a viver tudo aquilo de novo.
Como é que se dá a contaminação na escola? Ela é facilitada?
A facilitação da transmissão na escola é múltipla. As crianças se abraçam, elas se juntam, se tocam. Como é que se dá a transmissão do vírus? Por via respiratória e contato. Então eu tenho o controle menor sobre o tocar na boca, o tocar no nariz, no olho das crianças. Eu tenho controle menor sobre o uso adequado da máscara. Essa máscara que talvez ela possa trocar. A criança talvez entenda que isso seja um jogo, que ela possa trocar com a do colega, que é mais bonita. Tudo isso são facilitadores. Sem contar os espaços públicos dentro da escola, como o banheiro, outras áreas sociais. A proximidade entre elas facilita e os artigos onde elas tocam: a mesa, a maçaneta da porta. Tudo isso tem que se considerar.
E ai tem outro fator agravante, quando você fala das escolas privadas. Hoje praticamente todas as escolas privadas têm salas de aula fechadas, com ar-condicionado. Esse seria um fator que precisaria de uma adaptação imediata. Eu vou trazer jovens que estão adaptados a um nível de conforto que eles não vão poder dispor neste momento. Isso precisa ser trabalhado com muito cuidado, para não gerar confusão também. Quando eu lido com crianças e jovens, eu tenho uma forma de resposta e entendimento que é distinta e precisa ser trabalhado com muito cuidado. O risco de transmissão de vírus respiratórios na escola, em geral, é maior.
Não há registro de muitos casos graves de Covid-19 em crianças, mas existe um risco para professores e familiares?
Claro. As crianças são como que protegidas da infecção habitual, pelo Sars-Cov-2, pelo coronavírus novo, apresentando formas assintomáticas, ou formas muito leves. No entanto, elas podem ser a fonte para seus familiares que são vulneráveis. A gente tem uma proporção relativamente alta aqui no Rio Grande do Norte de crianças que vivem com idosos. É acima de 10%, entorno de 14%. Isso é muito difícil de lidar. Porque seria interessante que o retorno às escolas liberasse essas crianças. As crianças que vivem com idosos não deveriam voltar à escola. Como vou administrar isso também? Mas o ideal seria isso, porque ao retornar para casa, elas poderiam trazer o vírus. E ai tenho os professores, os familiares, todo um conjunto de pessoas que vão estar expostas.
E tem outro fator que nos preocupa hoje: é que as crianças não são “alvo preferencial” para o vírus, mas vem sendo descrita desde o final de março a ocorrência de manifestações graves em crianças, doença grave em criança, relacionada ao coronavírus. Isso é raro, mas a gente já tem ocorrência disso no Brasil. Já há inclusive nota técnica do Ministério da Saúde alertando os médicos pediatras para diagnosticarem precocemente essa possível relação de uma doença grave, que parece uma sepse de início súbito de uma criança que aparece gravemente enferma e que isso poder ser relacionado ao coronavírus. Então existe esse fenômeno que a gente ainda não compreende muito bem porque ele acontece. Ele às vezes acontece em crianças que não tiveram sintoma nenhum de coronavírus, mas ai o que vai se identificar é que, ou ela [criança] testa positivo, ou tem uma exposição muito estreita ao coronavírus. E isso nos preocupa também porque nós precisamos de uma rede de saúde adequada para cuidar de crianças graves. E nós não temos isso no Rio Grande do Norte hoje. O estado se preparou montando leito de terapia intensiva para adultos, e ele está bem suprido, mas não tem para criança. Então trazer esse contingente grande para exposição ao vírus, eu vou trazer um evento que é raro, mas na hora que eu tenho um grande número exposto, eu posso ter um número razoável de casos que precisem de suporte de saúde, de terapia intensiva para crianças e a gente não tenha.
Por isso a gente acha que é importante ser comedido, com prudência, observando o andar da epidemia, observando as experiências de outros países e estados, que nos antecederam e que estão vivenciando esse problema. Escolas que foram abertas e que tiveram que ser fechadas posteriormente por conta do recrudescimento da epidemia. A gente entende que esse é um momento que merece atenção maior e aguardar um pouco mais, para a gente observar o real impacto dessa retomada do setor econômico, que está levando, a cada onda de abertura, um volume maior de pessoas para a rua, para ver o que acontece. E eu quero passar um recado: não é porque o setor econômico está abrindo, que as pessoas precisam ir para a rua, se não há uma necessidade clara, se isso não é essencial para a vida dela. Abrir o shopping não significa que eu preciso ir para lá, me expor. É esse grande movimento de pessoas em um espaço menor que faz com que a transmissão volte a acontecer e a gente volte a perder o controle da pandemia. A gente ainda não conseguiu derrubar efetivamente esse vírus do nosso convívio.
Antes do surgimento de uma vacina, existe um momento ideal para reabertura das escolas? Quais pontos que, convergidos, poderiam permitir a retomada?
Eu penso que a reabertura das escolas deve ser o último retorno. As escolas foram o primeiro [setor] a fechar e deve ser o último a abrir. Porque a gente entende que vai ter um grande contingente de pessoas expostas. Cada vez que eu abro para exposição, eu sei que vai ter mais casos acontecendo, mas ai eu preciso ter capacidade para cuidar desses casos, que vão precisar de assistência à saúde. Então, se nossa decisão foi por começar com o setor econômico, e isso tem toda a sua importância, então vamos abrir o setor econômico gradativamente, observando, monitorando. Na hora que eu tiver com o setor econômico todo aberto e com o tempo de exposição suficiente para avaliar – ‘olha, o risco aumentou em x’ – faremos isso. Que tempo é esse? Duas, ou três semanas. Menos que isso, não dá para avaliar.
Eu entendo que no final de agosto teremos já uma condição mais aproximada de ver quando podemos retornar com as escolas. Quando a parte da economia toda estiver aberta, comércio, indústria, etc, já levei os adultos para a exposição e agora eu tenho como ver qual foi o impacto disso na ocorrência de novos casos, para depois trazer o contingente de jovens e crianças. Imagino que antes do final de agosto a gente não vai ter condições de dar uma resposta razoável sobre isso.
Fonte: G1 RN
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