O esquecimento é um processo natural. Sem ele, corremos o risco de sobrecarregar nosso sistema. Guardamos na lembrança os eventos mais importantes para a nossa sobrevivência, o problema é quando acontecimentos perturbadores fixam memórias persistentes que prejudicam nosso dia a dia e podem até causar comportamentos fóbicos e distúrbios de ansiedade, como o estresse pós-traumático. Esses distúrbios são comumente tratados com psicoterapia e medicamentos ansiolíticos e antidepressivos, porém essas abordagens nem sempre são efetivas. Por isso, a ciência busca alternativas mais eficazes e uma delas é a possibilidade de apagar as memórias indesejadas e até substituí-las por outras.
Estudo desenvolvido no Laboratório de Pesquisa em Memórias do Instituto do Cérebro (ICe) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), publicado recentemente no The Journal of Neuroscience, descreveu pela primeira vez as propriedades oscilatórias da atividade neural associada à desestabilização das memórias traumáticas em ratos. O trabalho demonstra que é possível induzir o esquecimento seletivo do medo e da aversão aprendidos, replicando artificialmente esse padrão oscilatório durante a lembrança do trauma.
Após o aprendizado, as informações são armazenadas e permanecem estáveis como memórias de longo prazo. Porém, quando utilizadas, essas memórias podem se tornar instáveis, devendo passar por um processo de reestabilização para persistirem. Esse ciclo de desestabilização/reestabilização permite que as memórias de longo prazo sejam modificadas e atualizadas. Porém, algumas dessas memórias, particularmente aquelas relacionadas a eventos traumáticos severos, são altamente resistentes à desestabilização e, portanto, muito difíceis de modificar.
Os pesquisadores decifraram e caracterizaram a atividade oscilatória dos neurônios do hipocampo de ratos suscetíveis à desestabilização de uma memória traumática perdurável e, após codificar essa atividade na forma de impulsos elétricos, utilizaram esse código para induzir o processo de desestabilização em animais naturalmente incapazes de esquecer, apagando neles qualquer rastro mnemônico do trauma.
Além de sua importância conceitual e teórica, o trabalho em questão demonstra que é possível utilizar no manejo terapêutico das fobias e do estresse pós-traumático ferramentas e técnicas semelhantes às usadas durante os procedimentos de estimulação cerebral profunda (do inglês deep brain stimulation), atualmente empregados eficientemente no tratamento de distonias, epilepsia e doença de Parkinson. “Quanto mais conhecemos acerca dos processos eletrofisiológicos e moleculares básicos que medeiam o armazenamento duradouro de informação, mais perto estamos de desenvolver tratamentos capazes de coadjuvar efetivamente na ressignificação de lembranças perturbadoras”, explica o Professor Martín Cammarota, coordenador do estudo.
Além do Cammarota, o artigo no The Journal of Neuroscience é assinado por Andressa Radiske, Maria Carolina Gonzalez, Sergio Conde-Ocazionez, Janine Rossato e Cristiano Köhler.
Desdobramentos
Neste estudo, os pesquisadores trabalharam com uma memória traumática induzida por um evento conhecido e claramente determinado. Porém, muitas vezes a origem da ansiedade, das fobias e dos comportamentos evasivos é desconhecida. Por isso, segundo Cammarota, o próximo passo dessa pesquisa consiste em “decifrar a atividade neural associada à evocação de medos atávicos, ou de raiz inescrutável, com o intuito de entender sua interação com os medos aprendidos e fazer-lhes acessíveis à terapêutica”.
Fonte: Agecom/UFRN