Antes que me acusem de ideologia política, faço questão de lembrar que meu posicionamento é linguístico. Não é novidade que se expressar em português com clareza e correção é uma das maiores dificuldades dos brasileiros. No entanto, em tempos de crise, quando todos precisamos de informações claras, há quem sempre consiga se superar lançando modismos linguísticos. Não seria diferente com a pandemia do novo coronavírus. A palavra mais desejada por alguns é “lockdown”.
Lima Barreto, importante escritor do Pré-Modernismo brasileiro, dizia: “O Brasil não tem povo, tem público”. E é essa a sensação que temos quando vemos nativos tentando, a todo custo, empurrar “lockdown” em nosso vocabulário. O autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma defendia a tese de que “a língua é a mais alta manifestação da inteligência de um povo, é a sua criação mais viva e original…” Na obra citada, o personagem Major Quaresma, que mergulha nas tradições brasileiras estudando a música, o folclore e a língua, defende a volta do tupi-guarani e dos costumes dos nossos indígenas.
De longe, não é essa a nossa intenção. A questão trazida à discussão diz respeito a uma subserviência que alguns insistem em ter com a língua inglesa. Recorrer a outro idioma em busca de uma palavra que nos falte não é problema. É natural, não se pode negar, que as línguas interajam, que busquem termos emprestados de outras. O próprio português é fruto da mistura entre o latim e outros idiomas falados na Península Ibérica. Contudo, preterir uma palavra nossa para passar uma mensagem em território nacional, usando um vocábulo estrangeiro, remete-nos à “síndrome do vira-lata”, como dizia Nelson Rodrigues, e vai de encontro à clareza.
A maneira de pensar de um povo se expressa em sua língua. Daí a frase lapidar de Fernando Pessoa: “Minha pátria é a língua portuguesa”, que Caetano Veloso retomou como “Minha pátria é minha língua”. Em sua canção, repleta de referências, Caetano afirma e reafirma a unidade camaleônica da língua, aberta à influência externa, como toda língua viva o é. Mas isso não implica submissão a outras.
Torna-se fundamental reconhecer que a diversidade de línguas reflete uma variedade de culturas, portanto pode ser uma fonte de aprendizado e troca entre os diferentes povos, em vez de um obstáculo ao convívio, o que parece ocorrer com o uso de “lockdown”, em vez de “confinamento” ou “confinamento total”.
Em um país em que a pizza rápida chama-se “express” – e há quem pense que o uso do termo estrangeiro sugere que o produto sairá do forno em menos tempo –, os serviços de entrega em domicílio – tão em voga neste momento – viraram “delivery” e loja de animal ganhou a denominação de “pet shop”, dá para imaginar o que aconteceria com “lockdown”.
Evidentemente, é preciso ter sensibilidade para as questões linguísticas, as quais não comportam radicalismos a ponto de proibir palavras estrangeiras, como queriam alguns outrora. A língua portuguesa não precisa dessa proteção. Muitas palavras de outros idiomas já foram assimiladas ao nosso dia a dia. Porém, todo termo deve levar em conta a comunicação até para não cairmos em situações esdrúxulas. Caetano, na canção já citada, diz “Gosto de ser e de estar”. Eis uma sutileza da nossa língua que o inglês e o francês, por exemplo, anulam. Para nós, falantes do português, “ser” é diferente de “estar”, por isso a percepção da língua como meio privilegiado de expressão e veículo de identidade cultural não pode ser perdida de vista.
Na história da Torre de Babel, as pessoas que chegaram à planície de Senaar pretendiam erguer uma torre muito alta, capaz de atingir os céus, para assim tornar seu povo célebre. Deus fez com que as pessoas deixassem de falar uma só língua. Falando idiomas diferentes, elas deixaram de se entender e acabaram se dispersando. Gn 11, 6-7: “E o Senhor disse: Eis que o povo é um, e todos têm uma mesma língua; e isto é o que começam a fazer; e agora, não haverá restrição para tudo o que eles intentarem fazer. Eia, desçamos e confundamos ali a sua língua, para que não entenda um a língua do outro”. Para este e outros momentos difíceis, entendamos que o importante não é querer ser célebre, mas falar uma só língua e manter a união.
João Maria de Lima é mestre em Letras e professor de língua portuguesa e redação há mais de 20 anos.
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