A Louca

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No que pensava ela quando, a soltar baforadas do cachimbo, olhava para aquele muro? A balbuciar qualquer coisa às plantas que brotavam ali em meio aos entulhos, a tudo que se descartava da casa — um balde trincado, uma bola furada — nos fundos do quintal? A erguer o dedo em riste em direção ao nada, como se ensaiasse um discurso a uma multidão de surdos, com o braço descarnado a balançar? E depois de toda euforia, o choro, as lágrimas saltando aos cantos dos olhos, correndo pelos sulcos da pele negra engelhada, um uivo, um pigarrear, cuspindo uma baba negra que às vezes lhe pendia da boca, insistindo em não cair, até que o peito puxava, com auxílio dum ronco, a força necessária para desprender a baba da boca, para só daí, então, arrastar-se até a cama, levando o cheiro de urina junto a si.

Neno tinha medo da louca.

E, talvez por medo, não conseguia sentir o afeto que um neto deveria sentir por uma avó. Tinha medo do arrastar dos pés miúdos e descalços em direção ao quintal. Da figura de cabelos grisalhos desgrenhados, do pano que levava em volta do pescoço, supurado de um tumor que não sarava. Do odor rançoso da saia, que apesar dos esforços da mãe dele, raramente trocava. Das palavras ininteligíveis, ditas entre os dentes. Do olhar aquoso que, de quando em quando, caía sobre ele e, para seu desconforto, lembrava o olhar da mãe.

Neno, vá pegar a bacia! Gritava a mãe lá do banheiro, com o chuveiro ligado.

Neno corria e chegava com a bacia. Esticava o braço na porta entreaberta e via a louca de cócoras, com a água do chuveiro a cair-lhe nas costas, no rosto, misturada às lágrimas. Parecendo uma criança. E a mãe de joelhos, a lhe acalentar o choro, passando os dedos por entre os fios dos cabelos grisalhos, parecendo que a louca fosse sua filha e não o contrário. Lavando suas partes íntimas. Era a única vez que Neno tinha pena da louca. Quando a via chorar assim, feito criança. Quando via a mãe prostrada pela dedicação.

Sua mãe ligava o rádio. Preferivelmente, às seis horas da noite — a hora do anjo — pra escutar a Ave Maria. Ficava de joelhos. Chorava. Rezava. Mas o tumor da louca só crescia, enquanto ela (a mãe) definhava. Junto com a louca. Então a raiva de Neno pela louca aumentava, assim como o tumor. Por que a louca não ia embora? Neno só viria a entender que, por mais que os esforços de sua mãe, e todas as rezas, e todas as missas que frequentava, fossem inúteis, sem sentido, a dor pela iminência da perda do que nos é mais caro é o que nos move. Entendeu isso já adulto, quando Mirtes, tomada pela demência, o colocou também de joelhos, e ele lhe passou também os dedos pelos fios dos cabelos grisalhos, e lhe acalentou o choro, e lhe lavou as partes íntimas.

Neno, vá ali comprar cigarros! Diga ao João da cigarreira que é pra mim.

Mãe…

NÃO DISCUTA COMIGO, MENINO! VÁ!

Então chegava Neno com o cigarro e entregava a Mirtes, que recebia com mãos trêmulas. Neno não havia percebido, mas no colo de Mirtes havia uma carta com marcas de batom. Neno trouxe o fósforo. Acendeu o cigarro, que caiu ao chão. Ele o apanhou e colocou na boca de Mirtes.

Não quero você fumando. Você é uma criança. Se eu pegar você fumando escondido…

Tá, mãe…

A exemplo da louca, Mirtes também olhava para o quintal enquanto fumava seu cigarro. No que pensava ela?

Foi num final de tarde que a louca expirou. Só havia uma amiga de Mirtes e Neno no quarto. O pai, como sempre, estava fora. No rádio, a hora do anjo. A louca começou a acompanhar a melodia em gorjeios pungentes e quase inaudíveis, enquanto a saliva escorria no canto dos lábios. A amiga de Mirtes trocava o lenço intumescido pelos pus. Neno se agarrava à mãe. Quando a música terminou, a louca escutou sinos anunciando a missa na paróquia do bairro. Ergueu pela última vez o dedo em riste em direção ao nada, como se ensaiasse um discurso a uma multidão de surdos, e o desceu. Um filete de sangue escorreu de seu ouvido, manchando o travesseiro. Mirtes gritou, em desespero.

Neno teve uma noite tranquila, sem pesadelos. Não lhe assustou o fato de estar ocupando o quarto que era de sua avó. Foi até a porta dos fundos da casa. Ficou parado contemplando o muro e as plantas que brotavam no meio do entulho do quintal.

Teve saudades da louca.

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