Enquanto enfrenta a epidemia do novo coronavírus, o Brasil vive um surto de sarampo, doença prevenível com vacina. Só neste ano, de janeiro até 23 de maio, o país teve 3.629 casos confirmados da doença, em 20 estados. O Pará concentra a maior parte dos registros, seguido de Rio de Janeiro e São Paulo. Para especialistas, o surto, que teve início no ano passado, quando 18 mil casos foram confirmados, é reflexo da queda generalizada da cobertura vacinal no Brasil. Nenhuma das vacinas dadas a crianças de até um ano de idade alcançou a meta em 2019.
Desde 2016, o país não cumpre a meta de vacinação da tríplice viral (para sarampo, caxumba e rubéola), estabelecida em 95%. O índice caiu para 90,52% em 2017, subiu para 92,64% em 2018 e voltou a cair no ano passado, quando fechou em 90,77%.
— Não existem dúvidas sobre a relação direta entre a queda da cobertura vacinal e o surto de sarampo — afirma a epidemiologista Carla Domingues, que foi coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI) do governo federal de 2011 a 2019. — A conta é simples: precisamos vacinar em torno de 2,8 milhões de crianças por ano. Se deixamos de vacinar cerca de 10%, como vem acontecendo nos últimos três anos, temos por volta de 280 mil crianças sem vacina a cada ano.
O Brasil chegou a receber, em 2016, o certificado de país livre do sarampo, perdido no ano passado, devido aos novos 18 mil casos. No mundo todo, 2019 também foi tido como o pior dos últimos 20 anos nos registros de sarampo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). O país mais afetado é a República Democrática do Congo (RDC), onde mais de seis mil crianças morreram vítimas da doença. Foi o pior surto de sarampo em um único país desde a invenção da vacina contra o vírus, em 1963.
Situação limite
Na RDC, a experiência fez com que a imunização contra a doença fosse mantida neste ano, mesmo durante o combate ao coronavírus. A OMS recomendou aos países, em março, que não interrompessem a vacinação de rotina, em especial nos casos de doenças em surto. O Brasil, no entanto, chegou a suspender o serviço temporariamente, entre 23 de março e 15 de abril, período da primeira fase da campanha de vacinação contra a gripe. O Ministério da Saúde informou em nota que a “medida preventiva” foi tomada para reduzir o contato entre crianças e idosos nos postos, a fim de evitar a disseminação do coronavírus. Não houve, porém, anúncio da retomada dos serviços de imunização.
— O sarampo é o primeiro a despontar quando há baixas coberturas vacinais, porque acontece ainda em muitos países do mundo e é uma doença de fácil transmissão — alerta Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). — Mas o que vivemos agora é um problema ainda maior. Temos hoje uma situação epidemiológica de limite.
Isso porque nenhuma meta de de vacinação para até 1 ano foi atingida no ano passado. A imunização para hepatite A e B, poliomielite e tetravalente, por exemplo, não chegaram ao índice de 95%. Segundo a atual coordenadora do PNI, Franciele Fantinato, uma mudança na forma de registro das vacinas aplicadas contribui para a queda nas coberturas.
— Desde 2014, nosso sistema passou a ser nominal, ou seja, identificamos o indivíduo, e não mais o número de doses aplicadas. Só que nem todos os municípios concluíram a implementação do novo sistema — explica ela. — Além disso, há uma série de outros fatores. As notícias falsas sobre vacina contribuem para que as pessoas deixem de ir aos postos. Ou ainda o próprio sucesso do programa de imunizações faz com que elas se esqueçam da importância de manter o calendário em dia.
Criado em 1973, o PNI foi concebido para horizontalizar as ações de vacinação, como lembra a epidemiologista Carla Domingues, num momento em que poucos estados faziam campanhas para poliomielite e sarampo, por exemplo. O primeiro êxito do programa, completa, foi justamente a erradicação da pólio, em 1994, e, mais tarde, em 2015, a da rubéola. O PNI contempla hoje 20 vacinas.
— Até a década de 1980, tínhamos coberturas vacinais medianas, de cerca de 50%. Com o programa, o fortalecimento do complexo da saúde e a criação de laboratórios, passamos a ter, nos anos 1990, elevadas coberturas vacinais que se mantiveram até 2015. A tendência de queda começou em 2016 e só piorou — lamenta. — Estamos acumulando anualmente 10% de crianças suscetíveis e, em poucos anos, podemos ter surtos de doenças imunopreveníveis. A imunidade de rebanho deixa de existir e, então, estamos expostos.
Fonte: Jornal O Globo
Imagem: Agência Brasil