Alcoolismo feminino: mulheres são o grupo mais vulnerável à doença durante pandemia

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A niteroiense Grazi Santoro não esquece da manhã em que pediu para a filha mais velha, na época com 9 anos, tomar conta da mais nova, com 6, para que ela fosse “resolver um negócio rapidinho na rua”. Trancou as meninas dentro de casa e, enquanto esperava pelo elevador, ouviu a primogênita bater na porta e implorá-la para voltar. “Ela sabia que eu ia beber”, relembra a publicitária, hoje com 51 anos e moradora de Belo Horizonte. “Achei que ia tomar uma cerveja, mas voltei de madrugada, completamente bêbada.” Por sorte, nada tinha acontecido com as meninas, que continuaram a conviver com o alcoolismo da mãe até o derradeiro episódio em que Grazi, embriagada, se envolveu numa briga física com um companheiro, também alcoolizado, e foi espancada. Desfigurada, teve que encarar a mãe, as filhas e uma triste verdade: a dependência da bebida tinha saído completamente do controle há tempos.

Esse foi o início da busca por um tratamento que já faz com que esteja há 11 anos sóbria, escapando das últimas estatísticas do Ministério da Saúde: o consumo excessivo de álcool entre a população feminina cresceu de 7,7%, em 2006, para 11%, em 2018. Outro dado relevante vem do relatório “Álcool e a saúde dos brasileiros — Panorama 2020”, publicado pelo Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa). Segundo o documento, houve um aumento de 19% nas internações relacionadas ao abuso da substância por mulheres, entre 2010 e 2018 — de 85.311 para 101.902.

Agora, com a quarentena imposta pela pandemia, há a preocupação de que esses números subam ainda mais. “O aumento da dependência vai ser um dos efeitos colaterais da Covid-19, e a parcela feminina da população é um dos grupos mais vulneráveis”, diz o psiquiatra Frederico Garcia, coordenador do Centro de Referência em Drogas da UFMG.

O médico explica que, biologicamente, as mulheres têm, em média, maior percentual de gordura corporal e demoram mais para metabolizar o álcool, se comparadas aos homens. Isso faz com que a substância fique mais tempo no corpo feminino, deixando-o mais propenso ao vício. A questão conjuntural da pandemia torna-se outro complicador. “A vulnerabilidade aumenta por causa dessa jornada tripla, de resolver coisas da casa, dos filhos e do trabalho, e também pela falta de suporte social”, analisa Frederico. “Quando tinha a mãe, a babá, a tia, a vizinha, dava para dividir um pouco a angústia e a ansiedade, que hoje recai sobre uma pessoa só.”

Diante dessa pressão, alcoolistas (ou alcoólicas) em abstinência ou em recuperação (o termo alcoólatra não é mais recomendado, uma vez que o sufixo “ólatra” traz ideia de adoração), além de usuárias ocasionais, precisam ficar ainda mais alertas, seja para manter-se longe do vício, controlá-lo ou afastar qualquer possibilidade de que o uso esporádico se torne um hábito maléfico. “Há um estímulo muito grande a associar bebida ao relaxamento”, diz a psicóloga Camila Ribeiro, de Taubaté (SP), presidente da Junta de Serviços dos Alcoólicos Anônimos. Segundo a profissional, mensagens com pedidos de ajuda e informações no site aa.org, de homens e mulheres, triplicaram desde março. “Esses desafios do dia a dia, para algumas pessoas, têm um impacto muito maior, e elas buscam no álcool uma forma de amenizá-los.”

É o que aconteceu com a advogada carioca Amanda Mariano, de 32 anos. Lidar com o fechamento de seu escritório, aberto no início do ano, com o medo da Covid-19 e com o excesso de informações criou um ambiente de ansiedade que a levava a tomar meia garrafa de vinho, todo santo dia, desde que o isolamento começou, em março. “Sentia necessidade de beber, principalmente quando assistia às notícias. Achava que aquilo me relaxava, mas, na verdade, me entristecia ainda mais. Passei a me sentir preocupada com a forma como estava lidando com o problema”, diz Amanda, que tomou decisões radicais há 15 dias: parou de ver TV e de beber.

Fonte: Jornal O Globo

Imagem: Shutterstock

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