Algumas garotas são grandes mães¹

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Já faz um tempo que não conversamos. Você emudeceu de repente, tornou-se fria comigo. E, mesmo assim, sou eu quem lhe trago flores. — Espero que goste; você sabe, nunca fui de mandar flores a ninguém. Então pedi ajuda a uma vendedora, que me explicou o significado de cada cor. Eu simplesmente balancei a cabeça e coloquei algumas cédulas amassadas em sua mão, ao que ela acenou com um sorriso.

Escolhi uma camisa menos surrada e limpa para o nosso encontro — você percebeu quando cheguei? — das que estavam amontoadas dentro do guarda-roupa. É o mínimo que se espera de um homem que carrega flores.

— Por favor, não se preocupe com o café. Não precisa se dar ao trabalho.

Sei que você não gosta, mas posso acender um cigarro? Tudo bem se minhas cinzas caírem sobre você?

Não que fosse necessário que soubesse, mas o bilhete que deixei junto ao arranjo, bem, eu me demorei cuidadosamente em cada linha, fazendo o melhor uso de cada letra, exatamente como quando você também se demorava tentando me ensinar.

Sei que você nunca aprendeu a ler muito além do próprio nome, então imagino o quanto foi difícil para você dar o que não tinha. Mas tudo bem. Eu posso ler o que está escrito aqui nesse cartão, como as tantas cartas que escrevi quando você me pedia para ler antes que fossem enviadas.

A propósito, tornei-me um “escritor” — que não ganha um tostão com as coisas que escreve (é o que escuto sempre) — e não um marinheiro que anda todo vestido de branco tal qual um dia você sonhou. Às vezes as coisas não saem a nosso gosto. Desculpe-me.

Eu não vim aqui pedir dinheiro — e como poderia? — entretanto, sei que, mesmo assim, você volveria céus e terras se lhe pedisse. Queria saber como está você, pois na última vez que lhe vi, antes de você ter se mudado para cá, saí de forma abrupta, amuado. Sem querer dar ouvidos a ninguém, ou falar com quem fosse que estivesse ao meu redor, soltei-me das mãos dos que tentavam me agarrar naquele momento, pedindo que eu ficasse.

Eu não havia lhe contado, mas quando fui embora, sem me despedir de você, parei no primeiro bar e bebi até tarde. Chorei debruçado a outros bêbados e algumas putas que não me conheciam e que também choraram comigo e me beijaram na boca — atitude essa que meu pai reprovaria completamente, você diria, e mais: “Não foi para isso que lhe criei.”

Talvez o maior motivo que me trouxe até aqui tenha sido a lembrança de chegar da rua cheirando a álcool, largado em teu colo como um Jesus de Pietá. Você me enrodilhando os cachos, me censurando, dizendo-me que “nenhum amor merece aquilo”. Então essas flores que trouxe comigo são para fazer as pazes contigo.

Acho que você deve saber que dia é hoje. As lojas e os restaurantes estão cheios. Mas tudo o que eu tinha gastei nesse buquê de flores. E mesmo se eu tivesse algum você não se moveria daí, não é? Não sairia do seu quadrado. Nós nunca tivemos esse hábito de nos reunirmos em “família”. Sua ideia de reunião familiar era acordar cedo, antes de o sol nascer, teu ventre úmido, colado a um tanque. Sonhar teus sonhos miúdos para depois dormir.

Então o fato de estar tão parada agora não deve lhe causar tamanha estranheza. Não lhe faz a menor diferença.

E já que não posso levá-la comigo, devo lhe dizer: longe desses muros faz um sol agradável. Estou aqui há horas e você ainda não me disse palavra. Talvez o convívio por aqui esteja lhe afetando. Esse silêncio. Essa paz. Onde não vemos vivalma.

Outro dia alguém afirmou que “uma família sem a presença de um pai ou um avô é uma fábrica de desajustados”. Acho que essa pessoa não sabe que “algumas garotas nasceram para ser grandes mães”.

Os portões do cemitério já vão fechar.

Tchau, mãe. Espero que tenha gostado das flores.

E, por favor, não me espere para o jantar.

 

In memoriam de Maria de Lourdes Lima Eloi.

Dedicado a Dona Wanda e Donas: Socorro, Ivonete, Salete, Neide, Maria, Carmelina, Aurea, Kalene e todas as mães do mundo e as que fizeram e fazem parte de minha vida. Theotokos, obrigado! Vocês são foda!

[1] O título faz referência a um verso da canção “Some girls are bigger than others”, da banda inglesa The Smiths.

Originalmente publicado em Substantivo Plural em maio de 2019

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