Coronavírus: isolamento domiciliar pode aumentar sobrecarga das mulheres

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Em inúmeros lares brasileiros, são elas que executam e organizam as rotinas da casa e das crianças, dando conta de questões práticas, como cozinhar e levar os filhos à escola, e de um trabalho invisível de planejamento que inclui pensar os ingredientes que faltam na despensa e lembrar das consultas médicas da família.

Não à toa, há sete meses, as duas mulheres entrevistadas pela nossa reportagem se declararam exaustas. Elas trabalhavam, eram as principais responsáveis pela casa e pelos cuidados com os filhos e, quando os maridos se mostravam dispostos a colaborar, cabia a elas deixar tudo planejado. Agora, com o novo coronavírus levando famílias em todo o mundo a ficarem juntas em casa, decidimos retornar a essas mulheres. Será que o isolamento social necessário para conter o avanço da Covid-19 as deixou ainda mais sobrecarregadas? Ou foi possível construir uma nova divisão do trabalho dentro de casa?

— Não consegui um lugar separado para trabalhar, então as crianças ficam em cima de mim, literalmente — diz Gabriela Domingues, de 34 anos, que é gerente de operações em uma empresa de comunicação e marketing e mãe de duas crianças: Guilherme, de 6 anos, e Maria Eduarda, de 1 ano e cinco meses. Moradora de Campo Grande, ela conta que o marido “continua na mesma” em relação à divisão das tarefas domésticas. Em setembro passado, Gabriela nos contou que Eduardo só contribuía quando era solicitado. E agora?

— Meu marido continua indo ao escritório, mesmo não sendo um serviço essencial. Ele chega tarde, então não participa da rotina de afazeres do dia — explica Gabriela, que tem se desdobrado para dar conta de tudo sozinha. — Estou trabalhando até mais horas por conta de todo esse caos. Os clientes estão desesperados, e o meu trabalho dobrou. Como estou em casa, as crianças querem mais atenção e estão muito ansiosas.

Para tentar amenizar as mudanças na rotina dos filhos, Gabriela montou um cronograma de atividades. Ela usa filmes e livros infantis para tentar ensiná-los sobre temas que eles aprenderiam na escola, como diversidade e bullying. Como seu filho Guilherme é autista, e precisa de terapias que não estão acessíveis no momento, ela tenta propor outras práticas para estimulá-lo.

Gabriela conta que o medo de contágio e o fato de que “a toda hora as coisas mudam” estão deixando a organização das tarefas ainda mais pesada.

— Me sinto muito cansada, sobrecarregada e estressada. Acordo às 6 horas e vou dormir à meia-noite, sempre muito preocupada. É difícil você se organizar com duas crianças dentro de casa. É mais uma preocupação, além das questões do trabalho, do medo de perder clientes, de ficar sem dinheiro e da incerteza com a situação do país. E a gente ainda teme ficar doente — desabafa.

A consultora financeira Mary Ellen Gomes, de 22 anos, vive no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, com o marido e as duas filhas: Isis, de 11 meses, e Helena, de 3 anos e 11 meses. Em setembro do ano passado, ela afirmou à nossa reportagem que era a responsável por todas as tarefas: “Meu marido participa quando chega em casa. Mas, por mais que ele tenha uma boa vontade absurda, geralmente só faz as coisas se eu pedir.” Com o isolamento domiciliar, a rotina de Mary Ellen mudou. O marido Fábio está com uma carga de trabalho menor e começou a participar mais das tarefas de casa.

— A carga horária de trabalho dele é menor. O Fábio está trabalhando em home office por escala: um dia sim, outro não. Então confesso que as tarefas estão mais com ele agora. Mas é claro que também fico com boa parte do trabalho de cuidar das crianças. A rotina mudou bruscamente — diz.

Ainda assim, o período de quarentena tem sido mais cansativo para Mary Ellen. Além das preocupações no trabalho, por atuar em uma instituição financeira que foi muito impactada pela incerteza que a pandemia causa na economia, ela afirma ser difícil trabalhar e não se preocupar com as filhas, que têm sentido as alterações na rotina.

— Atualmente, estou mais sobrecarregada com o trabalho. Mas, muitas vezes, estou trabalhando no quarto, escuto as crianças chorando na sala e tenho o instinto materno de levantar e ver se está tudo bem. Busco melhorar a situação e, quando está tudo estabilizado, tento retomar o trabalho de onde parei. Também já aconteceu de eu estar conversando com clientes e a minha filha entrar no quarto querendo brincar ou pedindo biscoito. Tem sido muito estressante, não por elas, mas pela situação como um todo — explica.

Fonte: Jornal O Globo

Imagem: arte de Paula Cruz

 

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