O que pensa a pessoa humana a respeito da vida depois da morte? Qualquer que seja a resposta sabemos que ela representa um conjunto de valores morais, culturais, místicos, religiosos e científicos que norteiam as nossas decisões. Por exemplo, a decisão de optar, em vida, pela doação de órgãos ou a doação do corpo, que são instrumentos importantes no avanço das pesquisas científicas e, também, essenciais no campo do ensino das Ciências da Saúde.
Na era medieval, entre os séculos XV e XVI, numa época em que as evidências empíricas se opunham às crenças e às influências espirituais, havia grande dificuldade na aquisição de corpos para o estudo da anatomia, e o homem valia-se de desenhos para retratar suas descobertas no interior do corpo humano. Datam desse período as famosas histórias de roubo de corpos em cemitérios e também de assassinatos, em grande parte de criminosos condenados, a fim de que os corpos pudessem ser entregues para estudo.
O artista-anatomista Leonardo da Vinci desenhou, durante 15 anos (de 1498 a 1513) órgãos e elementos dos sistemas anatômicos do corpo humano e, de acordo com alguns pesquisadores, poderia ter revolucionado a história da medicina pelo menos 20 anos antes do médico belga Andreas Vesalius, seu contemporâneo, considerado o Pai da Anatomia.
Da Vinci que, entre outras coisas, se destacou como matemático, engenheiro, inventor, pintor, poeta e músico, também participou de processos de dissecação, numa época em que as ações para a observação direta do corpo humano não eram permitidas nem adotadas pelas escolas de medicina medievais. Escreveu ele que “se você deseja conhecer as partes de um homem, anatomicamente, você ou seu olho devem enxergá-lo sob diferentes aspectos, considerando-o de baixo, de cima e dos lados, procurando a origem de cada membro” e, nos seus traços artísticos, ele deixou transparecer o fascínio das suas impressões.
A artista mexicana, Frida Kahlo, que viveu no século XX, também cogitou a ideia de fazer desenhos científicos para livros de Medicina, mas acabou se destacando na pintura pelo dantesco de suas obras, invariavelmente retratando sentimentos de dor. Depois de um grave acidente antes dos 20 anos, que a levou a passar por mais de 30 cirurgias, Frida se dedicou por inteiro à pintura e, na sua breve vida de 47 anos, produziu uma extensa e vigorosa obra que expressa a dualidade entre a vida e a morte e, mais que isso, a fertilização da vida pela morte.
É possível que essa dualidade entre vida e morte e a fertilização da vida pela morte, retratadas na obra de Frida Kahlo, possam, analogamente, sugerir que existe, sim, vida depois da morte, que a doação de corpos e órgãos à ciência pode representar muito para a humanidade e, em muitos casos, pode significar ou ressignificar vidas.
A doação de corpos na UFRN
Ao longo dos séculos, acompanhando o desenvolvimento da Ciência, foi ocorrendo uma naturalização e a normatização do processo. A doação de corpos avançou e, atualmente, as instituições têm duas formas de conseguir peças anatômicas humanas para atividades de ensino e de pesquisa: a não reclamação de corpos após trinta dias de reconhecido o óbito, com base na Lei nº 8.501 de novembro de 1992, e os programas de doação de corpos desenvolvidos pelas próprias instituições.
Desde a década de 80, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) conta com o Programa de Doação de Corpos, sob a responsabilidade do Departamento de Morfologia (DMOR), o qual visa a garantir aos alunos dos cursos da área da saúde a vivência de uma experiência empírica o mais perto possível da realidade.
O DMOR é dividido em três disciplinas básicas: estologia, que trabalha os tecidos e as células; embriologia, que trabalha a formação do indivíduo desde o embrião até a fase fetal; e anatomia macroscópica, que estuda as estruturas do corpo. É desta última que depende o programa de doação de corpos. Em média, 800 alunos são atendidos por semestre, a exemplo dos estudantes de odontologia, medicina, nutrição, fisioterapia e educação física.
De acordo com professor Expedito Silva, vice diretor do Centro de Biociências (CB) e um dos responsáveis pelo programa, os modelos artificiais representam cerca de 20% da realidade do corpo humano. Por isso, ele destaca a importância da doação de corpos para estudos científicos e para a formação profissional na área de saúde. “Você pode pegar o melhor modelo artificial que existir e ele não consegue chegar ao nível de realidade, nem próximo, do que representa a anatomia humana”, afirma ele. Para o professor, o modelo artificial pode ser útil, como um acessório em atividades específicas, mas na área de cirurgia, por exemplo, não existe modelo artificial de qualidade que substitua o corpo humano.
Atualmente, a UFRN possui 12 corpos armazenados em formol. Destes, cinco são corpos não reclamados e os demais, oriundos do programa de doação de corpos. Para o professor Expedito Silva, isso mostra que cada vez mais as pessoas se sentem à vontade em relação ao assunto. “Quando as pessoas vêm aqui e manifestam o desejo de fazer a doação, elas respondem um questionário sociocultural e, apesar de pensarmos em diversas questões que possam se mostrar como um impedimento, a maior queixa delas é o não conhecimento do programa”, relata. Ele expressa também a necessidade da população saber que, além de cremar e sepultar, há a possibilidade de doar para o ensino.
Homenagem da UFRN aos doadores
Semestralmente, a UFRN homenageia simbolicamente os doadores de corpo por meio da realização da Missa em Homenagem aos Doadores Anônimo. Entre os corpos atualmente armazenados no DMOR está o do jovem Jussier Jurandi, que foi um dos homenageados durante a missa realizada no segundo semestre de 2019. É nessa ocasião, por meio da homenagem, que alunos, professores, futuros doadores e parentes agradecem àqueles que contribuem para a formação dos profissionais que serão os responsáveis pela saúde de seus descendentes.
Dona Maria Núbia da Silva, mãe de Jussier, relata que, ao saber da morte do filho e constatar a impossibilidade da doação de órgãos, um desejo expressado em vida por Jussier, conversou com a família e decidiu doar o seu corpo. “Eu achava que a missão dele aqui na terra não tinha acabado, achei que seu corpo deveria ser estudado para ter uma serventia para a humanidade, já que ele também estudou anatomia, não do ser humano, mas estudou”.
Maria Núbia contou que o filho, recém formado em Medicina Veterinária, faleceu no auge de sua juventude, aos 26 anos, mas que continua materialmente vivo e contribuindo para a evolução humana. Emocionada, disse não se arrepender do gesto e aconselha outras pessoas a fazerem o mesmo. “Aconselho as pessoas a fazerem a doação de seus corpos, porque toda humanidade receberá retorno por meio dos serviços das pessoas que estudarão por meio de um corpo”, finaliza.
Segundo Expedito Silva, nos últimos cinco anos, houve um aumento no número de doações do sexo feminino, que representa cerca de 60% dos corpos disponíveis atualmente. Ele ainda acrescenta que o departamento raramente recebe corpos jovens. “A faixa etária é entre 60 e 70 anos. Nunca recebemos crianças, apesar de não haver uma proibição legal”, relata.
Segundo o professor, é preciso levar em consideração a variação entre a anatomia de uma criança, de um jovem, de um adulto e de um idoso. Ele explica que “A anatomia pediátrica é diferente da anatomia adulta, que é diferente da anatomia idosa. Por isso existem áreas segmentadas na Medicina, a exemplo da pediatria e da geriatria”, ressaltando, dessa forma, a importância de ter essas representações para aprofundar os conhecimentos da anatomia humana.
Convencimento e impedimentos
Quase três décadas após a legalização do processo de doação de corpos para fins de estudos, a partir da Lei nº 8.501 de 1992, o convencimento ainda é uma barreira difícil de transpor. Além desse fato, a legislação brasileira proíbe a doação de corpos oriundos de mortes violentas/criminosas e infectocontagiosas. A Legislação considera que, no caso de morte violenta, o corpo é uma peça importante no processo da investigação policial, sendo assim, prova de um crime; e, no caso das vítimas de moléstias contagiosas, há a possibilidade de contaminação por intermédio do corpo proveniente de uma dessas doenças.
Nos últimos anos, a UFRN tem trabalhado na conscientização das pessoas acerca da importância da doação de corpos. Campanhas, matérias jornalísticas, palestras e outras formas de comunicação têm sido usadas visando a esclarecer as pessoas acerca do Programa de Doação de Corpos.
Para as pessoas convencidas da importância da doação e motivadas a esse gesto, vale explicar que o trâmite é simples. Depois da decisão, com o formulário de interesse e os documentos em mãos, o doador deve se dirigir ao Departamento de Morfologia, onde recebe um cartão de doador e passa a fazer parte do banco de doação da universidade.
O professor Expedito Silva explica ainda que, apesar de a pessoa assinar, em vida, o Termo de Doação de Corpo, o representante legal, após sua morte, é quem decide o encaminhamento do corpo. Por isso, ressalta que o doador deve estar ciente de que precisa, ainda em vida, comunicar o seu desejo à família.
Após o falecimento, a família pode fazer as cerimônias religiosas e, se necessário, a universidade cede a capela do campus para os ritos religiosos. Logo após a cerimônia, o corpo é encaminhado à Universidade e, a partir desse momento, não há mais visitação. Apesar de não ter a possibilidade de uma visitação aos laboratórios, a universidade mantém túmulos no Cemitério Parque de Nova Descoberta, nos quais os corpos são sepultados após o processo de estudo.
Por último o professor explica que, ao contrário do que muitos pensam, é possível doar os órgãos e o corpo. Uma doação não anula a outra.
Conservação
O corpo tem tempo indeterminado de durabilidade e uso, a depender do desgaste causado pelo manuseio. Na UFRN, por exemplo, há corpos que chegaram na década de 70 e, quase 50 anos depois, são mantidos no formol, o que torna o tempo de “vida” indefinido.
Ainda assim, ciente da importância da conservação das peças anatômicas e, também, da dificuldade em adquiri-las, as instituições, de maneira geral, têm buscado utilizar técnicas que propiciem uma maior durabilidade. Na UFRN, o Departamento de Morfologia pretende implantar, nos próximos meses, a técnica de Plastinação, um método de preservação de espécimes biológicos que deixa a peça anatômica o mais próximo possível de sua aparência em vida. A técnica foi criada pelo médico anatomista Gunther von Hagens, da Universidade de Heidelberg, na Alemanha, em 1977. Nesse processo, os exemplares são envoltos por um polímero, que pode ser o silicone, epóxi ou poliéster, evitando, dessa forma, o uso de soluções conservantes como o formol. Além disso, a técnica ainda evita que estudantes, professores e técnicos tenham contato direto com a substância.
A Plastinação é implementada em três fases. A primeira, denominada Formolização, seguida da Impregnação Forçada, fase na qual é retirada toda a água e gordura do corpo por meio de desidratação com acetona, e a terceira fase, Cura do Polímero, quando o cadáver recebe um catalisador para que o polímero endureça. Segundo o professor Expedito, o tempo do processo varia de acordo com o tamanho do espécime. “Um coração, por exemplo, passa por todo o processo em uma semana, e um corpo humano leva, em média, seis meses”.
Atualmente o CB trabalha na finalização do processo de aquisição e montagem dos equipamentos necessários ao funcionamento do Laboratório de Plastinação que, segundo o professor, já está pronto, e a expectativa é que comece a funcionar neste primeiro semestre de 2020.
Fonte: Agecom/UFRN