Foi contrariando justamente a máxima popular de que um livro não se deve julgar pela capa que tive contato pela primeira vez com a obra de M. Aguéiev. Afinal, não é todo dia em que vemos o título de um livro com o singelo nome de “Romance com cocaína”. Do mesmo modo como não é todo dia que alguém faz algo idiota como comprar um livro simplesmente porque gostou do título.
O livro estava ali, espalhado em meio a outros tantos títulos no chão de um sebo. Num primeiro momento, pensei em se tratar de mais um livro que alertava a juventude sobre o perigoso mundo das drogas. Analisei a aposta e vi que não tinha muito que perder, além de outro livro que levava comigo debaixo do braço, que era sobre autoajuda, e que foi me dado com a melhor das intenções. Então resolvi arriscar. Perguntei ao proprietário do sebo quanto pagaria, um pelo outro. O proprietário do sebo, sem dizer nada, acenou com a cabeça e dispensou o dinheiro na troca. Daí sim fiquei preocupado. Então pensei: “Acho que não fiz um bom negócio”.
Mas, ao chegar em casa, não podia imaginar quantas surpresas me esperavam. E que surpresas.
Mas afinal de contas, quem foi M. Aguéiev?
Antes de iniciar a história propriamente dita, Romance com cocaína já se apresentava com ares de suspense. Em sua nota introdutória, descobri que o livro havia sido publicado em junho de 1934 (a primeira parte do livro) em uma revista criada por exilados russos na França chamada Nombres.
O manuscrito original chegara a Paris em um embrulho, vindo de Constantinopla. Além do título no embrulho, havia apenas outro nome.
O livro passou décadas no mais completo anonimato, até que Lydia Chweitezer (que trabalhava na editora Belfond, como tradutora, e quem escreve a nota) encontrasse por um acaso, em 1980, uma cópia do original russo (também) em um sebo, próximo ao rio Sena, e o levasse até Pierre Belfond, dono da editora Belfond. “Eu engasguei. Era como segurar nas mãos um grande livro de Dostoiévski ou de Nabokov e de nos fazer chorar” comentou Pierre Belfond, a respeito da obra.
Então, como explicar, durante todos esses anos o mais completo anonimato de um autor que se pode colocar ao lado de Dostoiévski e de Vladimir Nabokov?
Um dos motivos, como atesta Lydia Chweitezer, é que a editora Nombres, apesar das tiragens pequenas, primava por edições luxuosas, daí sua falência em um espaço curto de tempo. O outro motivo (e aqui quem especula é o autor desse artigo) foi que o livro ficou restrito ao gueto de imigrantes de russos em Paris (muitos dos quais, fugindo do pogrom* e da revolução de 1917) e mesmo tendo a Rússia dado ao mundo autores como Dostoiévsky, mesmo tendo dado ao mundo personagens como um Smerdiakov, Raskolnikov, seus leitores não estavam preparados para tanta franqueza, tanta decadência, e falta de pudor em M. Aguéiev, talvez o mais francês dos escritores russos.
O livro
Narcóticos e literatura não era de modo algum algo novo, mesmo no longínquo ano de 1934. Poetas, ainda em fins de século XIX, faziam do uso contínuo do ópio e do Absyntho, sua ”práxis”. Mas ao contrário de nomes como Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud, Paul Verlaine, (modelos desse ideal romântico), M. Aguéiev descrevia, com a precisão de um cirurgião, os estágios de um viciado.
A narrativa escolhida pelo autor é a confissão, mas sem a culpa. Há muito no livro do cinismo e do niilismo característico a época, que se pode comparar a Viagem ao fim da noite (1932) de Louis Ferdinand Céline ou Trópico de Câncer (1934) de Henry Miller.
O começo da trama se passa em um liceu, durante a primeira guerra mundial, e logo somos apresentados a Vadim Maslennikov , adolescente, então com 16 anos de idade, às suas inquietações, sua visão ácida e provocadora do mundo, e especialmente ao tratamento perverso que dá a sua pobre e velha mãe . É particularmente comovente a descrição que o personagem faz de sua mãe tomando sopa, limpando a boca suja, com um pano igualmente sujo ao mesmo tempo em que lhe esboça um sorriso, ao qual Vadim lhe devolve com escárnio.
Vadim é alienado ao próprio tempo (com a guerra que acontece, por exemplo), indulgente consigo e com os que estão a sua volta, a ponto de não se importar de transmitir doença venérea a uma moça a quem acabara de conhecer em uma noite.( Algo bem complicado no início do século XX, antes do avento da penicilina).
E da instabilidade púbere, aos questionamentos da fase adulta, que se chega à segunda parte do livro intitulada “Sonia”; quando Vadim finalmente entra na faculdade, todavia, ainda um errante pelas ruas de Moscovo. E é numa dessas andanças que um dia encontra Sônia, por quem se apaixona.
Sônia é o amor ideal, por isso, inalcançável. Há uma dificuldade do personagem em assimilar carne e espírito. (Que já deixava transparecer nos tempos de liceu. Sempre uma dualidade em seu modo de agir) Vadim irá perceber isso só depois de alguns meses de relacionamento com Sônia, quando, enfim, preparado para possui-la, falha. E é só observando os lençóis desarrumados no quarto da casa de Sônia, dias depois da chegada de seu marido, que Vadim sente-se então viril, porque o amor fora profanado. Mas, já era então tarde. Sônia, desiludida, acaba a relação e precipita Vadim ao vício e a um final surpreendente.
Fim do Mistério (?)
Romance com cocaína foi traduzido para o idioma francês e reeditado pela editora Belfond em 1980, gerando acalorados debates. De repente todos queriam conhecer o “célebre” autor desse livro obscuro.
Campanhas foram feitas em Paris e Istambul à sua procura. E só algum tempo depois descobriram que M. Aguéiev se tratava na verdade de um pseudônimo. Então críticos apressaram-se em enxergar características de outros autores em M. Aguéiev, achando, inclusive, que fosse um possível pseudônimo de Vladimir Nabokov (tese não sustentada pela viúva de Nabokov, que via mais diferenças do que semelhanças entre os estilos).
O fato só começaria a ser elucidado apenas em 1985, quando o Jornal Francês Liberation, através de uma investigação chegou à poeta Lydia TchervinskaÏa, que diz ter sido amante de Mark Levi, o verdadeiro autor de Romance com cocaína.
Lydia conheceu Levi em um hospital psiquiátrico antes da guerra, em Istambul. Ele tentava tratar de um tremor nas mãos (abstinência?). Levi foi oficial do exército vermelho. Fugiu ou foi desligado. Então esteve na Alemanha, França, Suíça, depois Turquia, onde atuou como espião para os soviéticos (?). Ensinou alemão. Retornou à Rússia em 1945. Morreu em 1973. Havia indícios de sua ligação com o serviço secreto russo.
Em 2013 o francês Le monde publica uma matéria contando da trajetória fantástica do livro até aqui.
Mark Levi costumava dizer à Lydia TchervinskaÏa que na “vida um homem tem de tentar de tudo”. Talvez.
Até mesmo quase desaparecer.
Fontes: Jornal Le monde, “O enigma M. Ageyev” Samuel Blumenfeld; e Romance com cocaína, editora Difel (1984)
pogrom* “Extermínio” em dialeto Iídiche (judeus russos)