O suicídio é um grande problema de saúde pública no mundo, sendo responsável por quase 800 mil mortes por ano. No Brasil, esse índice tem piorado segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), que observou aumento de 7% em 2016. Estudo publicado em 2018, no periódico britânico Psychological Medicine, já havia mostrado que a ayahuasca é eficiente na redução dos sintomas da depressão. O desdobramento desse trabalho, recém divulgado na Frontiers in Pharmacology, mostra que os efeitos desse chá vão além e podem ter importantes resultados na redução do risco de suicídio em pacientes que se submeteram à sessão controlada do uso desse psicodélico.
A ayahuasca, conhecida popularmente como chá do santo daime, é uma bebida utilizada para fins de cura e rituais espirituais pelas populações indígenas da floresta amazônica. Começou a ser usada em ambientes religiosos dos pequenos centros urbanos brasileiros em 1930, expandindo-se desde então para várias partes do mundo.
Os efeitos antidepressivos da ayahuasca já tinham sido investigados anteriormente, mas é a primeira vez que um trabalho testa uma substância psicodélica em pacientes com depressão maior, usando um ensaio randomizado controlado por placebo para depressão. Outro dado importante é que, na seleção dos voluntários, não foram excluídas pessoas com transtorno de personalidade, o que amplia os resultados do estudo.
Na nova fase da pesquisa, que vem sendo desenvolvida desde 2006, foi demonstrada que a ideação suicida dos pacientes estudados diminuiu já no primeiro dia após o uso da ayahuasca, se mantendo baixo até sete dias após a intervenção. Os pacientes que beberam placebo também apresentaram alguma melhora, mas bem menos significativa do que os pacientes do grupo ayahuasca.
Patrocinado pelo Imperial College London (Reino Unido), o artigo tem como primeiro autor o pesquisador Richard Zeifman. Ele utiliza dados do estudo randomizado realizado pelos neurocientistas Dráulio Araújo, chefe do Laboratório de Neuroimagem Funcional, do Instituto do Cérebro (ICe) da UFRN, e Fernanda Palhano, também do ICe. O trabalho teve colaboração ainda dos pesquisadores Emerson Arcoverde e João Paulo Maia-Oliveira, do Hospital Universitário Onofre Lopes (HUOL/UFRN), e Jaime Hallak, do Departamento de Neurociência e Comportamento, da Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto.
Segundo Zeifman, o ônus financeiro global em relação ao suicídio e as limitações em torno dos tratamentos atuais, faz surgir uma necessidade urgente de intervenções inovadoras para esse problema. “Uma intervenção potencialmente promissora para a suicidalidade são os psicodélicos (por exemplo, ayahuasca). Além disso, o uso psicodélico ao longo da vida está associado a menor suicídio e risco de suicídio”, contextualiza no paper.
Para Dráulio Araújo, a maior parte dos estudos entende que talvez substâncias psicodélicas possam ser arriscadas e o que se observa é exatamente o contrário. “Embora seja um dado preliminar, além de não aumentar o risco de suicídio, o uso da ayahuasca oferece melhoras significativas aos pacientes estudados. Nenhum deles piorou dos sintomas de depressão ou do nível de suicidalidade”, reforça o pesquisador.
Fernanda Palhano lembra também que não foram observadas, até então, prejuízos na função hepática, renal, ou mesmo no cérebro dos voluntários do estudo. Ao contrário, explica Dráulio, pesquisas realizadas pelo neurocientista Stevens Rehen, da UFRJ e Instituto D’OR, mostram que os efeitos da ayahuasca tendem a aumentar a neuroplasticidade e neurogênese do cérebro.
Rehen faz estudos com célula tronco e organoides cerebrais, os chamados mini cérebros. Tanto essa estrutura tridimensional de aglomerados neuronais, feitos em laboratórios, quanto as células troncos são expostas a substâncias psicodélicas usadas em estudos científicos. No caso da ayahuasca, além de não presenciar morte ou dano celular, o pesquisador observou que um dos seus compostos, a substância harmina, não alucinógena, pode aumentar a proliferação de progenitores neurais humanos em mais de 70%. Já o outro composto, a N,N-dimetiltriptamina (DMT), que é psicodélica, provocou ampliação da plasticidade neural.
Como medir a suicidalidade?
Ainda não é possível saber o que se passa na mente de uma pessoa. Se e quando ela pensa em cometer suicídio, por exemplo. Por isso, a ciência criou escalas clínicas que permitem aos profissionais da psiquiatria terem maior clareza na aferição do grau de severidade dos sintomas de depressão nos pacientes.
Com base nesse método, os psiquiatras aplicam questionários com algumas questões que o paciente responde diretamente e outras que os ajudam na observação clínica a partir da interação médico-paciente. Essas escalas contêm, em suas estruturas, uma parte que avalia exatamente a severidade da depressão e o risco suicida na pessoa.
No caso da pesquisa com ayahuasca, os profissionais do HUOL aplicaram o mesmo questionário um dia antes do tratamento, e o repetiram um dia, dois dias e sete dias depois para comparar os dados. O estudo aproveitou ainda para realizar exames, antes e depois, a fim de entender qual a origem da depressão.
Em parceria com os professores Nicole Galvão Coelho e Bruno Lobão Soares, ambos do Centro de Biociências (CB/UFRN), foi possível observar que houve modulação significativa no cortisol dos pacientes observados. Antes do tratamento com a ayahuasca, o nível desse hormônio na saliva era baixo e voltou a ter um valor semelhante ao de voluntários saudáveis após a ingestão do chá, o que não aconteceu com os pacientes do grupo placebo. O mesmo foi observado em relação ao Fator Neurotrófico Derivado do Cérebro (BDNF). “Essas duas mudanças que encontramos são mudanças que se esperam observar após o tratamento com antidepressivo”, disse Dráulio.
No geral, para verificar o grau de depressão no grupo estudado, foram selecionados marcadores biológicos de sangue, de ressonância magnética e eletroencefalografia (EEG), além dos psicológicos, todos associados, de alguma maneira, de forma consistente à depressão. Também foram observados o sistema imunológico, o sono e outros marcadores, sempre comparando o antes e o depois da submissão do paciente ao tratamento.
O passo a passo do experimento
Antes de dar ayahuasca às pessoas, foi preciso um trabalho minucioso e detalhado da escolha dos pacientes. Inicialmente, 218 foram avaliados, dos quais apenas 35 atenderam aos critérios de inclusão e exclusão. Desses, metade recebeu ayahuasca e outra metade, o placebo, que possuía substâncias que provocavam alguns efeitos conhecidos da ayahuasca – náusea, vômito e diarreia.
Para participar da pesquisa, era necessário ser maior de idade, nunca ter bebido ayahuasca, não estar grávida, não ter transtorno psiquiátrico relacionado à esquizofrenia ou transtorno bipolar. Também era importante estar fazendo uso de medicamento antidepressivo, sem resultados aparentes. Ou seja, ser resistente ao tratamento.
Uma vez atendidos os critérios, o paciente entrava na fase do desmame da medicação antidepressiva. 15 dias depois da suspensão da medicação convencional, os selecionados retornavam ao hospital, no caso o HUOL, onde está o laboratório dos pesquisadores Dráulio Araújo e Fernanda Palhano, para iniciar o protocolo da pesquisa.
Nesse protocolo, que tinha uma agenda muito rígida, o paciente chegava em uma terça-feira, por volta do meio-dia, encontrava a equipe e após as avaliações dos sintomas da depressão e dos marcadores associados à depressão, era preparado para o EEG. Jantava por volta das 19h e ia dormir em um ambiente preparado no próprio laboratório.
Às 5h da manhã do dia seguinte, quarta-feira, era acordado para colher saliva e sangue, tomar café, descansar um pouco e só então ser preparado para ingerir a ayahuasca, ou o placebo, no caso do grupo de controle, o que acontecia por volta das 10h. Durante todo o efeito do chá, o paciente era monitorado por eletroencefalografia, eletrocardiografia e eletromiografia e, a cada hora, feitas avaliações com psiquiatra.
Por volta das 16h, a equipe do projeto conversava com os pacientes que relatavam a experiência com a bebida, respondiam mais alguns questionários e só depois eram liberados. No dia seguinte, quinta-feira, retornavam para fazer toda a bateria de exames novamente do meio-dia até o dia seguinte. Sete dias após ter tomado a dose de ayahuasca ou placebo, os pacientes voltavam para uma consulta com o psiquiatra. Após essa consulta, os pacientes voltavam a receber um tratamento tradicional regular contra a depressão. As avaliações dos pacientes passaram a ser realizadas a cada 30 dias para verificar a situação dos envolvidos durante um período de seis meses.
Próximo passo
Apesar do avanço e do pioneirismo, pois foi o primeiro grupo no mundo a dar uma substância psicodélica para pacientes com resistência ao tratamento dentro de um hospital, e o primeiro a fazer a mesma coisa utilizando um ensaio randomizado controlado por placebo, o projeto ainda é considerado piloto. O próximo passo da pesquisa é aumentar o número de participantes e aplicar um esquema de tratamento, com a ingestão de doses regulares do chá a cada 15 dias para que os sintomas de depressão sejam avaliados no longo prazo.
No longo prazo, é difícil dizer que a ayahuasca deva chegar aos pacientes pelas vias tradicionais da indústria farmacêutica. Os pesquisadores apontam que outras substâncias psicodélicas com propriedades aproximadas já estão sendo testadas e, talvez, consigam ser introduzidas primeiro. É o caso da psilocibina, substância extraída do chamado “cogumelo mágico”, que tem uma vantagem inicial por ser uma única substância, enquanto a ayahuasca é um coquetel.
Contudo, segundo Dráulio Araújo, apesar de a psilocibina apresentar efeitos parecidos com os da ayahuasca, não há, até o momento, nenhum ensaio randomizado como o realizado na UFRN em pacientes com depressão resistente.
Dráulio também não imagina a ayahuasca virando comprimidos ou sendo envasada em frascos para serem vendidos em farmácia. Em seu entendimento, a ideia segue mais a linha de um procedimento médico, como é caso da quimioterapia ou da anestesia. Ou seja, a psiquiatria poderá usar essa substância em um futuro tratamento como parte de um procedimento a ser realizados em pacientes selecionados.
Fonte: UFRN