O Design e a transformação social

Nas paradas de ônibus, na estética dos restaurantes, nas estampas de camisetas, na construção da alma de Natal. Em quaisquer desses espaços é possível reparar a influência do Design na imagem urbana do município. Numa interface que mescla áreas como a Antropologia, Arquitetura e Artes, a Debulha 2019, evento realizado por alunos do curso de Design do Departamento de Artes da UFRN, buscou evidenciar a relação entre o Design e a capital e como essa relação impacta a cidade e a sociedade. A 10° edição da Debulha trouxe para o debate o tema Tecendo a cidade no mesmo período em que o curso de Design da UFRN, o primeiro do Estado, completa 10 anos.

Atividades do Debulha 2019 – Imagem: Lilian Carvalho

Embora a relação da cidade com o design seja recente, alguns trabalhos acadêmicos realizados pelos estudantes e professores do departamento já sinalizam avanços. É o exemplo dos artigos produzidos ou orientados pela professora Lorena Torres em sua vida de docente no DEART/UFRN. A professora participou de projetos envolvendo a construção de identidade da cidade de Natal nos aspectos comerciais e culturais como, por exemplo,  trabalhos sobre as paradas de ônibus em Natal e a ambientação do hospital Mãe Luíza.

Lorena comenta que a paisagem urbana de Natal aos poucos se configura com outra cara, acontecendo com uma maior representação por meio do Design Gráfico, através das identidades visuais de estabelecimentos comerciais, instituições educacionais e eventos sazonais. Isso acontece principalmente devido à familiaridade das pessoas na cidade com o trabalho de Design Gráfico, antes mesmo do curso existir, com profissionais como publicitários e arquitetos. Hoje, já se pode perceber outras áreas de atuação do designer natalense, como moda, produto, jóias, serviços e editorial.

“O que precisamos, enquanto classe, é difundir na cultura natalense a importância de nosso papel social na cidade. A Debulha, então, é um dos grandes expoentes da cidade que exerce essa articulação entre academia e sociedade, não só como movimento de ensino, mas também de pesquisa, extensão e mercado”, afirma a professora.

Para Lorena, é importante lembrar que a identidade não pode ser algo fixo e concreto e sim algo que pode ser criado ou recriado (ou na terminologia do Design, algo que precisa ser projetado). Complementando esse raciocínio, o poeta sírio-libanês, Ali Ahmad Said, declara que a  identidade não pode ser vista como algo terminado ou definitivo, ao contrário, é uma possibilidade sempre aberta. A identidade é uma corrente contínua que se nutre de inúmeras quantidades de riachos e regatos.

Letícia Azevedo, estudante de Arquitetura e Urbanismo e ministrante de uma das oficinas da Debulha, acrescenta que os profissionais do design tendem a ter uma visão bastante holística, possibilitando analisar os ambientes em diversos aspectos com o objetivo de melhorar ambientes internos e externos. “A cidade pode, e deve, ser bonita, funcional, agradável e democrática. É a casa de todos nós e acredito que a maioria deseja habitar um ambiente agradável”.

Debulha

A Debulha nasceu junto com o curso de Design na UFRN há 10 anos e a cada edição fomenta discussões intrínsecas à sua importância e influência na sociedade. O termo não resume a Semana Acadêmica de Design, ele surge do verbo “debulhar”, em referência à dificuldade de fazer a atividade acontecer no início.

De acordo com o aluno de Design, Rafael Cardoso, um dos organizadores do evento, geralmente a Semana possui um tema central que denomina as atrações e atividades. Neste ano, Debulha teve como tema Tecendo a cidade, abordando como o Design se relaciona com Natal. A proposta discute uma melhor visão da atuação da área no mercado daqui, que é algo ainda muito precoce que está começando a se desenvolver.

Estudante Rafael Germano usa balanço, fruto de intervenção no prédio do Deart – Imagem: José de Paiva Rebouças

Para Rafael Germano, estudante de Design e organizador da Debulha, o fato de Natal ser uma cidade muito receptiva torna difícil a definição de uma identidade específica. “Historicamente, Natal é uma cidade acostumada a receber coisas e pessoas de fora, seja cultural ou fisicamente. Essa é uma característica muito presente em nossa cidade, desde as formas de construção, dos móveis e objetos. Então, juntamos muitas coisas e vários estilos de fora e acabamos adaptando para a nossa realidade”, acrescenta.

Por ser feito por alunos e para alunos do curso de Design, o evento busca um contato mais próximo com a inovação e aspirações artísticas na atuação do mercado atual. As atividades acontecem em um espaço de compartilhamento de experiências, comunicação, dados, culturas e conexões. É exemplo da proposta da professora Lorena Gomes Torres que propôs ao menos duas intervenções no prédio onde acontecem as atividades.

Primeiro ela e os estudantes fizeram um desenho com areia colorida, na intenção de misturar a cor de fazer desaparecer o signo a partir da interação das pessoas que entravam no prédio. Depois instalou um balanço de madeira e cordas simples em uma área de sol, de maneira a tornar aquele espaço interessante e usual para os participantes da semana. O resultado não poderia ser mais positivo, pois incentivou a interação e, de fato, modificou o cenário comum da estrutura predial.

Intervenção proposta pela professora Lorena Torres – Imagem: José de Paiva Rebouças

A arte maldita

Na ligação com a Arte, uma das propostas mais radicais do Design pode ser denominada de space invander (intervenção urbana). Essa manifestação artística tem como objetivo produzir novos modos de perceber o cenário urbano e criar relações afetivas colocando em evidência problemas sociais. A Linha aqui é mais que um artifício para a criação de uma decoração, ela é a obra-prima para a conscientização, pensando o mundo moderno.

O britânico Banksy é um dos principais nomes da street art (Arte de Rua). Suas obras são majoritariamente realizadas com a técnica de trabalho em estêncil e demonstram ácidas críticas ao capitalismo e o autoritarismo. Suas pinturas urbanas sarcásticas fazem parte da estética de cidades como Bristol e Londres, além de estarem espalhadas em diversos países.

De acordo com o próprio artista, no seu livro Guerra e Spray (2005), os indivíduos que mandam nas cidades não compreendem o grafite porque acham que nada tem o direito de existir se não gerar lucro, o que torna a opinião deles equivocadas a respeito da Arte de Rua.

No Brasil, ainda antes de Banksy, já recebia fortes referências da Arte Maldita. No documentário Tropicália, dirigido por Marcelo Machado, vimos que a contracultura Marginália buscava resistir, com o auxílio da arte, à opressão da ditadura na década de 60. Os artistas se utilizavam de Técnicas de colagem e pintura estêncil como desafio à ordem social com seus valores conservadores e burgueses. Se tornou uma resposta aos cartazes e slogans largamente difundidos na época como o famoso Brasil, Ame-o ou Deixe-o, que embora tenha tido pouca ascensão na época, dados os temas polêmicos colocados em evidência, foi um grande influenciador do movimento musical tropicália (68-70).

Esse movimento teve como seu marco o disco Tropicália – com a participação de artistas hoje consagrados como Gilberto Gil, Gal Costa, Caetano veloso e a banda mutantes. Um grande tecido com a reprodução da obra do artista plástico Helio Oiticica, seja marginal, seja herói, era exibido em alguns shows dos cantores, além de criações de músicas manifesto a partir da poesia marginal de Torquato Neto.

Hélio defendia ideia da arte estar mais próxima das pessoas nas ruas e não em museus e molduras, pois, segundo Torquato, já não bastava “saber da piscina, da margarina, da carolina e da gasolina”. Os discursos sobre uma almejada ruptura com o consumismo e a cultura de massa estavam em pauta com a juventude ativista, e o Design era uma de suas mais poderosas armas.

Design como identidade urbana

Estudantes discutem sobre o Debulha na entrada do prédio do Deart – Imagem: José de Paiva Rebouças

A cidade sendo moldada pelas mãos e mentes dos profissionais de Design é algo discutido por bastante tempo, assim como suas ligações com outras áreas fundamentais no processo, entre elas a Arquitetura. “A arquitetura, para além da estrutura da casa, também se preocupa muito com a aparência e de como aquilo pode ornar bem, e o Design não é necessariamente só isso, é muito mais voltado para uma questão de inovação, soluções mais baratas e resultados melhores para cada problema. A arquitetura bebe dessa fonte”, diz Marília Carvalho, membro da comissão do evento.

A estudante de Arquitetura e Urbanismo e ministrante de uma das oficinas, Leticia Azevedo, completa que a requalificação do espaço urbano e espaços de permanência tem a intenção de incentivar o uso dos locais. No espaço urbano, por exemplo, um projeto de Design de uma praça pode ser para sanar problemas relacionados à estrutura física dela, mas não só isso. A intervenção pode ser também  por questões atrativas, como o plantio de árvores e pintura em cores chamativas, tornando assim o ambiente mais agradável para permanência humana.  “A questão de ser algo funcional e agradável é bem complexa se pararmos para analisar superficialmente. Os espaços livres urbanos têm função social, tal qual os espaços privados. Eles são um respiro da cidade”, acrescenta.

Estudante Ivana Sacramento interagindo com projeto do professor Rodrigo Boufleur, montado como intervenção do Departamento de Artes – Imagem: José de Paiva Rebouças

Essa ideia também pode ser encontrada no livro Design Thinking, de Tim Brown, uma grande inspiração dos trabalhos de pesquisa realizados na área. A obra pontua que é importante a colaboração dos profissionais junto às opiniões dos usuários para serem construtoras do ambiente que frequentam, se utilizando de métodos dos pensamentos artístico e do ergonômico, a fim de criar um sistema de identidade. O objetivo é gerar um ambiente ou produto confortável e melhorar a experiência das pessoas, seja de um estabelecimento comercial ou público.

Desse modo, a conexão do Design, seja ele de interiores, de produtos ou de moda, está também intimamente ligada à arte e a responsabilidade social. Sendo consequentemente traduzida nas decorações, mobiliários, cores, texturas, tecidos, grafites e outros componentes disponíveis para a criação de uma identidade visual.

O Design no RN

Fachada do prédio antigo do Deart – Imagem: José de Paiva Rebouças

A graduação em Design começou em 2009, graças à expansão da educação superior no Brasil, financiada pelo Reuni (Reestruturação e Expansão das Universidades Federais). Após se discutir quais profissionais receberiam os investimentos destinados para a UFRN, observou-se que o Rio Grande do Norte tinha carência nessa área, tanto que esse é o primeiro curso de Design do Estado.

Segundo a professora Helena Rugai Bastos, do Departamento de Artes (DEART) e ex-coordenadora da Graduação em Design, o curso é produto da reflexão de alguns professores das áreas de Arquitetura e Artes Visuais, assim como da contratação de pessoas de fora para fazer consultoria. “Quando nasceu a área era muito nova, não tinha cultura do design no RN. Na verdade, a gente ainda está no processo de consolidação dessa cultura”, explica.

Professora Helena Rugai, do Deart, explica sobre início do curso de Design na UFRN – Imagem: Lilian Carvalho

Nessa década, o curso mudou. Vem com a mesma estrutura e proposta pedagógica, mas, há pelo menos dois anos, os professores vêm reestruturando o projeto pedagógico e devem reestruturar a matriz curricular. Além de uma necessidade natural, de repensar as carreiras e a formação, o Departamento acompanha recomendação do Ministério da Educação para que possam acompanhar o desenvolvimento do mercado e a introdução das novas tecnologias, novos meios e  novas mídias.

“Esses dez anos são efetivos e marcantes para a gente poder medir a consciência do design, que vem crescendo de forma muito rápida no mercado local. Então, já vemos muitas vagas para esta área, coisa que não se via há cinco anos. De fato, a gente conseguiu mudar um pouco essa perspectiva no mercado, pensando numa consolidação da área profissional”, reforça Helena Rugai.

Contextualização histórica

Arte em exposição no Debulha – Imagem: Lilian Carvalho

A professora Helena Rugai explica que as origens do Design no Brasil se dão muito para além da institucionalização do ensino. Por volta da década de 1950, são observados os primeiros cursos efetivos, muito motivados pelos fatores econômicos, tecnológicos e políticos, muito depois da Europa e EUA que começaram a consolidar essa área nos séculos anteriores. “Essa carreira acaba surgindo em sintonia com o processo de industrialização do país”, afirma.

No resto do Brasil, principalmente no Sudeste, alguns cursos vão se desenvolver a partir da década de 1960. “Você tem no primeiro momento Rio e São Paulo, depois Minas, logo em seguida Maranhão, Recife, o Sul. Há um franco desenvolvimento, inclusive na Paraíba, mas o Rio Grande do Norte não acompanhou”, esclarece.

Para Helena, o RN tem vocações diferentes do resto do País, muito mais agrícola, familiar e uma indústria incipiente com alguns setores que não dependem necessariamente da institucionalização do Design, como é o caso da moda e das confecções, por exemplo. “São da área de Design, porém se desenvolvem aqui, principalmente em Natal e área metropolitana, muito em função do fast fashion, ou seja, chega praticamente pronto, com pouca interferência das pessoas que trabalham na área”, disse.

Isso começa a mudar a partir de 2009, com o curso de Design, quando as empresas começaram a buscar um profissional mais especializado, com a visão do que é o negócio da moda, além de pensar um pouco para além da modelagem básica que tem o no mundo todo. “A partir daí, o RN vai começar a perceber que há um desenvolvimento dessa moda, com uma certa identidade no restante do Brasil. Minas, São Paulo, Rio, o Sul, Recife, Caruaru, trazem tendências específicas, vão desenvolvendo uma identidade própria não só da moda, mas também na construção dos artefatos”, acrescenta.

Fonte: UFRN

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