“O Urso e o Rouxinol” – Um conto de fadas sobre uma menina e sua conexão com as criaturas da floresta

O romance “O Urso e o Rouxinol” (2017), da autora norte-americana Katherine Arden, é o primeiro volume da trilogia Winternight e conta a história de uma menina chamada Vasilisa Petrovna (carinhosamente apelidada Vasya) e sua família, que vivem num vilarejo próximo à uma floresta na Rússia medieval. A trama se inicia quando a mãe de Vasya morre ao dar à luz a ela, então Pyotr, o pai, precisa cuidar de todos os seus filhos crescidos e de sua filha recém-nascida com a ajuda de Dunya, a ama da família.

220px-vodyanoyDunya sempre contou histórias sobre os espíritos da floresta para as crianças, transmitindo suas crenças e fazendo-os manter uma relação respeitável com todas as criaturas que protegem a natureza, porém quando Pyotr decide ir à Moscou em busca de uma nova esposa, essa relação amistosa começa a ser ameaçada.

Anna Ivanovna, a nova madrasta, é uma mulher extremamente devota, que apesar de seu pai tê-la obrigado a se casar com Pyotr, desejava desesperadamente tornar-se freira e trancar-se num convento. A razão disso era pela moça acreditar que via “demônios” em todos os lugares, porém Anna não é a única que enxerga todas essas criaturas. Vasya sempre teve uma conexão inexplicavelmente forte com a floresta e sempre fora vista falando sozinha pelos cantos, mas diferente do que todos pensam, ela conversa com os seres da floresta, que apenas ela e sua madrasta conseguem ver.

Vendo que a casa de seu marido está infestada de “demônios”, de acordo com sua percepção, e que parecem ficar mais fortes à medida que recebem oferendas de todos os moradores do vilarejo, Anna decide pedir para que um novo padre seja trazido de Moscou, visto que o padre daquela região não instrui corretamente seus discípulos, segundo ela própria. A chegada do novo padre instaura uma atmosfera de medo naquela vila e abala sua paz com os protetores das florestas, fazendo com que um perigo inimaginável paire sobre a aldeia e todos que nela residem, porém Vasya é a única capaz de salvar sua aldeia e todos que ama da destruição.

 

Essa obra transmite uma sensação muito agradável, além de contar uma história cheia de magia que ensinou muito da mitologia russa e toda a cultura tribal que funciona como base para os acontecimentos do livro. Toda a ambientação e os mitos são apresentados de forma tridimensional, pois a personagem Vasya os vê e convive com eles como se fizessem parte de sua família, não há estranhamento algum nesse vínculo, pois essas criaturas estão intrínsecas nas crenças daquele povo.

O questionamento central da trama é sobre como muitas culturas ricas acabam sendo destruídas e demonizadas exclusivamente pelo preconceito de quem não as conhece, assim como muitas culturas que foram dizimadas através dos séculos por pessoas que consideravam suas próprias crenças como superiores, negando toda a ancestralidade e identidade que cada uma dessas lendas carrega consigo. Podemos traçar paralelos com a colonização de terras indígenas, por exemplo, e a forma como seus costumes foram apagados na medida que esses povos foram catequizados no cristianismo, que é semelhante à situação que presenciamos em O Urso e o Rouxinol.

Trata-se de uma fantasia rica e muito expressiva, um verdadeiro conto de fadas. Os personagens humanos possuem uma profundidade comovente, tanto que conseguimos entender seus temores e a forma como pensam. Arden possui uma especialidade em criar personagens simpáticos, os quais podemos compreender suas nuances e motivações, por mais que não concordemos, como é o caso de Anna Ivanovna; bem como personagens empáticos, com quais conseguimos nos identificar e assimilar suas emoções de forma clara, como é o caso de Vasya.

Enquanto os personagens que são criaturas míticas possuem um encanto difícil de expressar em palavras, pois eles são tão carismáticos que é inevitável apegar-se a eles. Alguns são muito divertidos, outros desconfiados, porém todos possuem uma força vivaz e interessante.

Por se passar em uma época sombria na qual mulheres não tinham poder sobre a própria vida e eram silenciadas por homens, Vasya é uma garota livre, extremamente forte e corajosa, que ama sua família e seus amigos protetores da floresta e dos animais. Ao contrário do que se espera dela na época em que vive, é uma personagem que não se importa com o que as outras pessoas pensam sobre ela, desde que possa ser ela mesma e que podemos afirmar com certeza: não tem medo de ser autêntica nem de confrontar qualquer homem que vier a desafiá-la.

Podemos vislumbrar muito bem as dificuldades de ser mulher em uma sociedade machista transmitidas nesse livro, pois cada personagem feminina traz consigo certas opressões e padrões de comportamento impostos a elas bem como são cobradas a agir de maneiras que não as agradam e forçadas a aceitar decisões que não tomaram, assim como cada uma de nós em algum momento da vida.

Vemos essas questões manifestadas claramente em Anna Ivanovna, que teve suas vontades completamente ignoradas por seu pai e pelo marido que não gostaria de ter; em Vasya e sua liberdade constantemente mal vista e constantemente sexualizada e em Olga e sua ambição de sair daquela aldeia e ver o mundo ser trocada por um casamento arranjado. As vivências dessas personagens são reais para cada uma de nós, mulheres, e o jeito intenso que a autora tem para contar suas histórias nos faz entendê-las muito melhor do que acreditamos à primeira vista.

Apesar de ser uma realidade dura para ser mostrada em um livro jovem adulto, todos esses tópicos apresentados tornam o universo retratado no livro muito mais palpável, o que para mim, sem dúvida, foi um diferencial significativo.

O segundo livro da trilogia chama-se “A Menina na Torre”, foi publicado no Brasil em 2019 e continua a narrar a história de Vasya no momento em que a deixamos ao final de O Urso e o Rouxinol. Enquanto o terceiro livro que encerra Winternight, chamado “The Winter of The Witch” – ou “O Inverno da Bruxa”, em tradução livre -, foi publicado nos EUA também em 2019, porém ainda não tem previsão de lançamento no Brasil.

Essa obra de fantasia está dentre as minhas preferidas e pretendo relê-la muito em breve, porém tenho uma recomendação especial, essa história se torna muito mais extraordinária quando lida no inverno – estação na qual se passa – na companhia de um cobertor e uma xícara de chocolate quente e esteja preparado para a magia da floresta te contagiar.

Fonte: O Barquinho Cultural

Sair da versão mobile