Os próximos dois meses serão de suor, trabalho duro e muita ansiedade dentro de um certo laboratório do setor 4 da UFRN. A equipe do Projeto Car-Kará AeroDesign luta contra a falta de verba e patrocinadores para terminar a tempo o avião rádio controlado que vai representar o grupo na 21ª Competição SAE Brasil AeroDesign, que acontece nos dias 24 a 27 de Outubro no Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial, em São José dos Campos, São Paulo.
Contra a adversidade, muita criatividade. Os alunos reutilizam materiais de outros protótipos para concluir o modelo 2019. Na oficina, pedaços de madeira especial, motores e fibras de carbono são cortados, soldados, colados, pintados e refeitos com perfeição para diminuir os gastos que podem superar facilmente os R$ 15 mil reais. Um orçamento impraticável na atual conjuntura de cortes e remanejamento de verbas pela qual passa as instituições federais de ensino.
Mas a equipe Car-Kará, a exemplo do pássaro ao qual pegou emprestado o nome, decidiu lutar e levantar voo. A SAE Brasil AeroDesign é o ápice do ano letivo e uma das razões de existir do grupo. A competição é um desafio anual lançado aos alunos de engenharias na intenção de intercambiar conhecimentos, através de aplicações práticas, seguida de uma apertada disputa entre equipes universitárias de todo o Brasil e América Latina e que classifica a equipe vencedora a participar da etapa internacional, no Estado da Geórgia, nos EUA.
O braço internacional da SAE é conhecido por ser uma das principais fontes de normas e padrões relativas aos setores automotivo e aeroespacial em todo o mundo, congregando 138 mil engenheiros técnicos especialistas relacionados ao mercado automotivo, aeroespacial, comercial, industrial e automobilístico.
O Car-Kará AeroDesign já tem tradição na competição e é considerado uma das equipes fortes na disputa. O grupo potiguar já venceu o mundial por duas vezes: em 2005, quando foi campeão da Classe Regular e em 2008, quando foi campeão da Classe Advanced. Desde o ano 2000, quando começou a competir nacionalmente, o Car-Kará já subiu ao pódio 15 vezes, conquistando a primeira colocação por 5 vezes, sendo duas na Classe Regular (2003 e 2004) e três, na Advanced (2003, 2007 e 2014).
Segredo
Visitando a oficina da equipe Car-Kará AeroDesign, no setor 4 da UFRN, percebemos que uma preocupação corriqueira do grupo é manter o segredo sobre as inovações impostas ao novo protótipo. Fruto do trabalho intenso de mais de 15 alunos de Engenharia Mecânica, Ciência e Tecnologia, Engenharia Aeroespacial e Engenharia Mecatrônica da UFRN e orientados de perto pelo professor Raimundo Freire, a equipe preferiu fotografar para esta matéria com o modelo da disputa de 2018, “para evitar a espionagem dos outros competidores”. Nada mais justo: O segredo também é a alma da disputa.
A competição busca estimular as equipes a resolverem desafios reais enfrentados pela indústria aeronáutica e para conseguir destaque é preciso conquistar aquele ponto de equilíbrio ideal entre força, leveza e habilidade. Este princípio serve tanto quanto para unificar uma equipe quanto para tirar uma aeronave cargueira rádio controlado do solo. O projeto é avaliado do ponto de vista teórico, criatividade, o relatório geral e a defesa oral do trabalho. Além, é claro, da parte mais emocionante da competição, que são as provas de voo onde os protótipos são submetidos ao limite de suas capacidades.
Para a competição de outubro 95 equipes vindas de todo o Brasil e países da América Latina, estarão participando, reunindo mais de mil pessoas em torno do evento. As equipes competem em três classes: classe regular com 60 equipes, a classe advanced com dez equipes e a classe micro com 25 equipes, fora as que estão participando do torneio de acesso por falta de espaço.
A disputa é um complemento importante ao conteúdo explorado em sala de aula pelos alunos de engenharia da UFRN. Competindo eles podem conhecer e experimentar os princípios básicos da aviação, aprender a trabalhar em equipe, pesquisar, planejar e trabalhar para atingir objetivos necessários para o desenvolvimento do projeto escolhido.
Com o sucesso e a evolução do projeto e modernização do modelo, os desafios só aumentaram, como atesta o professor Raimundo Freire, há 12 anos orientando o projeto: “Hoje o princípio que utilizamos nesse modelo é o mesmo dos aviões de passageiro e carga normal. Claro que respeitando as diferenças de segurança e durabilidade pois a gente faz um avião pra durar uma competição enquanto um avião normal pode durar décadas”, compara.
Em um avião de grande porte, explica Raimundo, o trabalho é direcionado para que o equipamento tenha muita eficiência e que consiga levar o maior número de pessoas ou carga, gastando a menor quantidade de combustível possível. A ideia do projeto é fazer algo similar só que em uma escala menor.
Basicamente é o mesmo princípio utilizado pelos aviões comerciais, guardadas as devidas particularidades de cada um. A partir da velocidade gerada pela tração do motor ele pode ter uma força de sustentação, gerada pela diferença de pressão entre a parte de baixo da asa e a parte de cima. Assim quando o fluido se divide entre estas duas partes, a geometria do perfil da asa gera essa diferença de pressão e também o ângulo de ataque da asa em relação a esse vento que incide nela. Por isso que o avião voa: Como o fluido que passa pela parte de baixo da asa tem uma pressão maior e uma velocidade menor ele gera essa força para cima que faz com que o avião suba mesmo sendo mais denso que o ar. (Fonte: Matheus de Brito Manso, aluno de Engenharia Mecânica e capitão da Equipe Car-Kará)
O custo total de construção do aeromodelo e passagens, como já foi dito, preocupa. “Quando se trata de indústria você tem que falar com as pessoas certas e nem sempre você consegue encontrar essas pessoas. Então o patrocínio de material se torna mais fácil. Então, por exemplo, a gente fala com a empresa que fabrica cola e ela patrocina o material não só a nossa equipe como várias outras da competição. Para a indústria é muito pouco mas pra gente é uma maravilha”, afirma Raimundo, que ressalta o apoio da UFRN especialmente na cessão de passagens para os participantes.
Mais leve, mais forte
Os materiais escolhidos para o aeromodelo precisam ser ao mesmo tempo leves e fortes. Precisam ter estabilidade de voo e ainda assim conseguir carregar uma carga que pode ultrapassar três vezes o próprio peso. Em 2018, por exemplo, o modelo que ficou em segundo lugar na Classe Advanced pesava 4,7 kg vazia e 18,7 kg com a carga acoplada. A velocidade máxima chegou a 82 km por hora.
O Car-Kará utiliza especialmente fibra de carbono e uma madeira extremamente leve chamada balsa, que pesa pouco mais do que um papel cartonado. Com isso o projeto consegue fazer uma asa com a envergadura de quatro metros pesar apenas um quilo e meio, já incluindo a parte elétrica. O carbono garante a resistência e já é adquirido na medida certa no formato de tubo. O restante é garantido por uma parte de cola, uma parte de solda e dezenas de horas extras dentro da oficina.
“A gente fica apaixonada pelo projeto. Pra mim é mais do que estudo, é também um hobby e um investimento. Normalmente no tempo livre ou depois da aula a gente vem pra cá e as vezes vira a madrugada, sacrifica as férias pra conseguir terminar uma etapa. Mas enquanto a gente está aqui consegue agregar a aprendizagem de muitas áreas do seu perfil acadêmico e profissional”, analisa a aluna de Ciências e Tecnologia Alline Souza.
A aluna participa do projeto desde 2017 e diz estar animada com a possibilidade de chegar ao mercado profissional com experiência, sendo uma das responsáveis por um projeto vencedor como o Car-Kará. “Minha responsabilidade é calcular todos os coeficientes aerodinâmicos que são usados para calcular a carga que o avião vai levar. A aerodinâmica também vai especificar quais os perfis vão ser usados na asa do avião e na cauda. Basicamente é uma das áreas que deve estar pronta primeiro para que as outras áreas consigam fazer os cálculos adequados, explica Aline.
As páginas cheias de paixão e fórmulas aerodinâmicas de Alline podem ser o princípio ou o impulso necessário para mais uma história vitoriosa da equipe Car-Kará AeroDesign. Ou como cantava – ou quem sabe profetizava – Maria Bethânia em 1965, Carcará/Lá no Sertão/É um bicho que avoa que nem avião.
Fonte: Agecom/UFRN