Watchmen começou a sair nos EUA em junho de 1986 e terminou em outubro de 1987. A revolução que ela causou a partir daquela época não se deu só por conta da HQ magistral que é, mas pelo que fez com as carreiras de Alan Moore e Dave Gibbons, pelo que fez com a DC Comics, pelo que fez para todos os quadrinhos que vieram a seguir e pelo que continua fazendo com leitores mundo afora mais de trinta anos depois.
Com o novo seriado da HBO que promete dar continuidade à HQ – que estreia em 20 de outubro – é uma boa hora de você lembrar ou conhecer mais sobre a repercussão da HQ que muitos consideram a melhor de todos os tempos, desde o momento em que foi lançada até os dias atuais. As ondas de choque ainda atingem com força o mundo dos quadrinhos, do cinema e da televisão.
E se você ainda não leu Watchmen, não vamos contar nada da história. Mas, pelo amor de Dr. Manhattan, leia agora. Será a primeira vez de muitas.
Junho de 1986
Watchmen n. 1, O Cavaleiro das Trevas n. 4 (de Frank Miller) e os dois capítulos de “O Que Aconteceu ao Homem do Amanhã?” (também com roteiro de Alan Moore) chegaram nas comic shops dos EUA em junho de 1986, com diferença de uma semana entre cada uma. As quatro HQs estão entre as mais lidas e relidas e vendidas dos quadrinhos dos EUA desde então.
Direitos
Na época em que Watchmen estava saindo, o burburinho entre quadrinistas era não só sobre a qualidade da HQ, mas sobre o contrato que Moore e Gibbons haviam assinado: diferente da cessão total de direitos, tradicional do mercado, eles teriam participação nos lucros (8%) e seriam donos da HQ caso a DC deixasse o material fora de catálogo. O contrato serviu de referência para vários projetos autorais na DC. Mas também renderia dores de cabeça…
O Filme, parte 1
A ideia de uma adaptação cinematográfica de Watchmen circula desde que a HQ ainda estava na prancheta. O produtor Joel Silver (Predador, Máquina Mortífera, Duro de Matar, Matrix) chegou a ter reuniões com Moore e Gibbons, onde eles imaginaram um Arnold Schwarzenegger nu e pintado de azul para interpretar Dr. Manhattan. Um dos diretores que se cogitou foi Terry Gilliam. O projeto avançou até início dos anos 90, inclusive com roteiro de Sam Hamm (do Batman de 89), mas parou por aí.
Merchandising
Os bottons e o relógio de pulso (watch) eram óbvios. Pôsters e camisetas, também. O Watchmen Portfolio trazia pôsters das doze edições, das capas exclusivas da edição francesa e cartazes que Dave Gibbons fez para divulgação da série (e hoje é disputado pelos fãs). Houve até um RPG: na verdade, duas expansões do RPG DC Heroes, da Mayfair Games, com aprovação e material inédito do próprio Alan Moore, inclusive com informações que não estão na HQ. E, para jogar o RPG, bonequinhos metálicos toscos com personagens e objetos da série.
O final
Se há um pedaço de Watchmen que faz alguns fãs da série torcerem o nariz, é o final – especificamente o “plano alien” de Ozymandias. O final foi inclusive motivo de discussão entre Moore e seu editor, Len Wein, sobretudo porque plagiava um episódio da série de TV A Quinta Dimensão, dos anos 1960. Moore não quis mudar sua ideia. Anos depois, a adaptação para o cinema mexeria no final e Wein, o editor que não se convenceu, alfinetaria Moore em Antes de Watchmen.
Os prêmios
A série obviamente arrematou vários prêmios da indústria de quadrinhos assim que saiu: quatro troféus no Eisner Awards, quatro no Kirby Awards e sete no Harvey Awards. Mas um dos maiores reconhecimentos viria do renomado Hugo Awards, prêmio de ficção científica literária que em 35 anos nunca tinha dado um troféu a quadrinhos. Em 1988, Moore e Gibbons levaram seu foguetinho na categoria “Outros Formatos”.
Graphic Novel
Depois da publicação dos 12 capítulos, em junho de 1987, a DC lançou Watchmen em uma coletânea – ou graphic novel, como mandava (e ainda manda) a moda do mercado – em setembro daquele ano. Embora hoje isto seja comum para quase todas HQs, na época este tratamento era reservado só a projetos muito especiais. No início de 88, a série ainda ganhou uma coletânea especial em capa dura, dentro de um estojo, com material extra. Desde então, Watchmen nunca saiu de catálogo e é por isso que, conforme o contrato, seus direitos nunca voltaram às mãos de Moore e Gibbons.
Watchmen II – Parte 1
A DC começou a falar em continuações de Watchmen antes mesmo de a série chegar ao final. Moore e Gibbons acharam que não havia sentido em sequências (fora o financeiro), mas cogitaram um prelúdio chamado Minutemen ou uma expansão dos Contos do Cargueiro Negro. Sem que os dois soubessem, a DC já tinha até autores contratados para fazer prelúdios com Comediante e Rorschach. Adivinhe o que aconteceu quando Moore descobriu.
DC nunca mais
As incomodações de Moore com o merchandising, com as propostas de continuações/prelúdio e outras desavenças com a DC levaram-no a cortar laços com a editora ainda em 1987. Moore encerrou suas obrigações contratuais: entregou Watchmen e V de Vingança, e fez a turnê promocional de Watchmen na Inglaterra. Mas seu grande projeto com os heróis DC, Twilight, nunca aconteceu. E Moore jurou nunca mais trabalhar com a editora.
A Era Dark
O sucesso de Watchmen e Cavaleiro das Trevas fez muitos quadrinhos quererem ser Watchmen e Cavaleiro das Trevas. Heróis soturnos, violentos, com (pretenso) aprofundamento psicológico vieram às pilhas, embora quase nunca tenham atingido o nível das duas inspiradoras. O fato é que elas acabaram com a chamada Era de Bronze (1970-1985) do quadrinho norte-americano e inauguraram o que alguns chamam de Era Moderna e outros de Era Dark (ou das Trevas), que continua até hoje.
Não Gostou?
Embora muita gente considere Watchmen obra-prima, coisa de gênio, “Cidadão Kane dos quadrinhos” (Paul Chadwick), os elogios não são universais. John Byrne, grande nome das HQs entre os anos 70 e 90, reclama que a série “estragou” os gibis dali em diante por desconstruir o super-herói inocente e lançar a era soturna. Grant Morrison, autor que tem relação tempestuosa com Moore, diz que a trama depende de “você aceitar que o homem mais inteligente do mundo faria a coisa mais imbecil do mundo depois de uma vida inteira pensando nesse plano.”
Anotações de Watchmen
Você já tinha notado o peru de quatro coxas na primeira edição? E a edição em que as páginas se espelham? Uma das maneiras mais fascinantes de reler Watchmen é na companhia das Watchmen Annotations: o guia que explica as referências, curiosidades, técnicas narrativas e outros detalhes da série. Elaboradas por um fã, Douglas Atkinson, nos anos 90, você encontra as Annotations facilmente na internet, em inglês e português. É uma aula de quadrinhos e de análise. A DC lançou sua própria versão oficial das “anotações”, Watchmen Annotated, sob o comando do estudioso Leslie S. Klinger, em 2017.
Comic Sans
Odiada por 95% dos designers, a fonte Comic Sans MS foi criada pelo tipógrafo Vincent Connare em 1994, que se disse inspirado no letreiramento que Dave Gibbons fez à mão em Watchmen e no letreiramento de Cavaleiro das Trevas. O resultado, porém, não lembra em nada as letras destas HQs e a fonte digital continua sendo das piores para letreirar quadrinhos – e para se usar em qualquer outra coisa.
O gibi pirata
“Marooned”, a HQ dos Contos do Cargueiro Negro que aparece parcialmente em Watchmen, lembra os quadrinhos de terror da DC dos anos 50 a 70, mas é invenção total de Moore e Gibbons. Em 2006, um fã resolveu ver até onde os dois haviam pensado a HQ dentro da HQ e resolveu montá-la – conforme os quadros e recordatórios disponíveis – em 20 páginas. O resultado é tão ou mais assustador. Veja aqui.
Remasterização
Em 2005, a DC Comics reeditou Watchmen no formato Absolute: páginas maiores, capa dura, estojo e até uma fitinha para marcar página. Além disso, a HQ foi remasterizada: Dave Gibbons fez algumas correções no desenho e John Higgins recoloriu a HQ com novos recursos digitais – embora a mudança nas cores tenha sido mínima, esteticamente. Desde então, todas as reedições de Watchmen seguem essa versão remasterizada.
Melhores romances desde 1923
Em 2005, dois críticos literários da Time resolveram decretar a lista dos 100 melhores livros da literatura em língua inglesa desde que a revista começou a ser publicada, em 1923. No meio de O apanhador no campo de centeio, A revolução dos bichos, Ao farol e Reparação, lá está Watchmen, a única HQ entre as eleitas.
Watchmen Babies
Talvez a maior prova de que Watchmen já faz parte da cultura pop, a participação de Alan Moore em Os Simpsons, em um episódio de 2007, inclui uma piada com Watchmen que faz referência às desavenças do autor com a DC Comics. Moore gravou a voz de seu personagem e interpreta com maestria sua raiva do mundo.
O Filme, parte 2
Com os direitos vendidos para o cinema desde 1986, a produção estava parada há uma década quando a Universal Studios e a Paramount Pictures tentaram retomar o projeto. Nomes como David Hayter, Michael Bay, Darren Aronofsky, Tim Burton e Paul Greengrass tocaram na pré-produção, que não andou. O projeto foi parar na Warner Bros. (do mesmo grupo da DC Comics), que estava só sorrisos com os 300 de Esparta de um certo Zack Snyder…
O Filme, parte 3
Com orçamento de US$ 130 milhões, Watchmen: o Filme saiu em 2009 com enorme divulgação mundial. Incrivelmente fiel à HQ, reproduzindo até enquadramentos de Dave Gibbons, a produção é criticada sobretudo por esta fidelidade excessiva. E tem quase três horas de duração – mais de três e meia no Ultimate Cut, que inclui “Contos do Cargueiro Negro” em versão animada. Embora o filme não tenha perdido dinheiro, o resultado nas bilheterias foi fraco.
Moore e milhões
Os anos da campanha de marketing em torno do filme e o filme em si fizeram bem às vendas de Watchmen, a HQ. Em 2012, um executivo da DC disse que a coletânea já tinha vendido dois milhões de exemplares. Moore e Gibbons ganharam bastante dinheiro nos royalties. Moore, porém, já desgostoso com outras adaptações de sua obra para o cinema, fez campanha contra o filme. Gibbons ficou de apoiador solitário enquanto a Warner/DC fazia a festa.
Os Bastidores
Único livro oficial sobre Watchmen (a HQ, não o filme), Os Bastidores de Watchmen, de 2008, é o relato bem ilustrado de Dave Gibbons sobre o ano em que colaborou com Moore, seus estudos e suas referências para a criação da série – também sobre a remasterização, quase 20 anos depois. Moore, porém, nem chegou perto do livro. Alguns anos depois, viria a dizer: “nem tenho um exemplar de Watchmen em casa.”
Enquanto isso, nNo Brasil
Watchmen foi editada no Brasil quatro vezes: em 6 edições pela editora Abril (1988-1989, com uma coletânea depois); em 12 edições também pela Abril (1999); em 4 volumes pela Via Lettera (2005-2006); e na Edição Definitiva (2009) ainda em catálogo pela Panini. O tradutor Jotapê Martins, responsável pelas três últimas, conta que, na primeira publicação, a série quase ganhou o nome Os Vigilantes.
Antes de Watchmen – Parte 1
Após anos de rumores, em 2012 a DC confirmou o controverso projeto Antes de Watchmen, com várias minisséries e especiais de prelúdio à HQ. Dave Gibbons deu aval, mas não participou. Já Alan Moore entrou em modo “berserk”: declarou que havia recusado US$ 2 milhões da DC para dar a benção ao projeto, que ia “cuspir veneno” em tudo relacionado a Watchmen e que o Universo DC vinha vivendo de suas ideias desde os anos 1980. Além disso, cortou relações com Gibbons.
Antes de Watchmen – Parte 2
Composto por oito minisséries e uma edição especial, “Antes de Watchmen” reuniu nomes fortes do mercado de HQ – Darwyn Cooke, J.M. Straczynski, Adam Hughes, Jae Lee, Brian Azzarello – mas não provocou nem um décimo da comoção que foi a Watchmenoriginal. Vários quadrinistas inclusive se declararam contra o projeto. Uma edição especial de encerramento, o Epílogo, foi cortada pela DC devido ao desânimo geral.
A torradeira
Como se estivesse alheia a toda a briga em torno de Watchmen, uma licenciada da Warner Bros. lançou em 2012 a Torradeira Watchmen Rorschach: para seu pão ficar gravado com uma das marcas de um dos grandes personagens da HQ (ou dois poodles fazendo amor enquanto defecam).
Pax Americana
Uma das homenagens (ou críticas) mais interessantes a Watchmen é Pax Americana, especial que fez parte do projeto Multiverso de Grant Morrison. O autor e seu colaborador preferido, Frank Quitely, buscaram construir uma trama complexa de conspiração entre super-heróis e governo dos EUA, com recursos narrativos fora do comum e usando os personagens da Charlton Comics que inspiraram os de Watchmen.
A Continuação
Finalmente aconteceu: a DC resolveu integrar seu universo tradicional de super-heróis ao universo de Watchmen. O pivô é a maxissérie O Relógio do Juízo Final, de Geoff Johns e Gary Frank, lançada em 2017 e com previsão de ser concluída este ano. Superman, Batman e outros se veem frente à frente com Dr. Manhattan, o diário de Rorschach e outros elementos da maxissérieoriginal. Ainda não se sabe se e como a integração vai continuar após o fim da série.
A série de TV
Zack Snyder começou a falar com a HBO sobre Watchmen, uma série de TV, em 2015. Depois o projeto caiu nas mãos de Damon Lindelof (Lost, The Leftovers) e saiu do papel com Regina King, Tim Blake Nelson, Jeremy Irons e Robert Redford no elenco. Lindelof declarou que a série não é exatamente continuação da HQ (embora se passe depois dos fatos da HQ), mas uma história original inspirada em Moore e Gibbons. Há os que esperam muito, os que esperam nada e os que nem querem assistir.
Dave Gibbons hoje
Dave Chester Gibbons tinha 36 anos quando começou a trabalhar em Watchmen. Seus dois projetos de maior destaque após a HQ que definiu sua carreira são Liberdade e a série de minisséries e especiais da personagem Martha Washington, junto a Frank Miller, mais Serviço Secreto, a minissérie com roteiro de Mark Millar que virou o filme Kingsman. Ele faz roteiros, desenhos e capas esporadicamente nos EUA e na Inglaterra e está com 70 anos.
Alan Moore hoje
Alan Moore tinha 31 anos quando começou Watchmen. Desde então, ele produziu obras de destaque nos quadrinhos como Do Inferno, Lost Girls, A Liga Extraordinária e Promethea, autodeclarou-se mago, e já atuou como músico, editor, artista performático, roteirista de cinema e ator. Ganhou destaque mundial com as adaptações de V de Vingança e Watchmen para o cinema e renega estas e quaisquer outras produções de Hollywood baseadas no que fez. Lançou Jerusalem, romance de 1300 páginas que levou mais de uma década para produzir e diz que se aposentou dos quadrinhos. Está com 65 anos.
Fonte: Omelete