O Estrangeiro *

“….Volto para casa. Para o lugar onde, por força do hábito, cada um de nós tem para chamar de lar. Da parada de ônibus, de onde deverei descer, até, são duzentos metros de caminhada. Um caminho muito curto se comparados aos 4.37 anos-luz. Um sorriso e um portão se destravarão quando eu chegar.

As expressões dentro do ônibus são todas tensas, porque é noite e porque ao mesmo tempo em que somos muito violentos, somos frágeis. Outros predadores — assim como nós — estão à espreita. Os ombros dessas expressões estão todos curvados à frente, resultado da labuta diária e da gravidade desse lugar, incompatível com a nossa. Do local de onde viemos.

Olho para uma criança que dorme no colo da mãe e penso no tempo estúpido em que se porá de pé em relação a outros espécimes desse mundo que, por ora, habitamos. O quanto é difícil para nós batalharmos o pão de cada dia, e assim cuidarmos uns dos outros, onde até a luz do sol nos mata. Penso no que essa mulher sofreu para que a cabeça dessa criança- grande para os padrões das espécies desse habitat– passasse no meio de suas pernas.

Eu estou muito cansado. Minha cabeça está recostada ao vidro da janela. Um vendedor ambulante vendia o seu produto e nos fala a todos de seu testemunho, de quando saiu do fundo do poço, resgatado com a promessa de uma vida melhor. Eu não gosto desses vendedores ambulantes. Entregando aqueles papeizinhos em busca de algum trocado. Mas mesmo assim, resolvi aceitar. Ele se referia a um outro mundo. Apesar “desse mundo” ser bastante popular, não há coordenadas para sua localização. Não emite calor, radiação, ou qualquer perturbação gravitacional. Não se pode achar com nenhum instrumento de navegação conhecido, nem muito menos com os telescópios mais avançados nesse canto primitivo do universo. Talvez esteja em uma galáxia muito, muito distante.

Puxei o pobre vendedor pelo braço e no ouvido segredei-lhe: eu sei como se sente. É difícil acordar assim todos os dias. Algumas pessoas também me torceriam a cara, ou fingiriam que estavam falando ao celular, como agora. Ninguém está disposto a ouvir quando você diz “meu reino não é desse mundo”. Eu entendo você perfeitamente. Chegamos aqui há 65.000 milhões de anos, despencados do céu…  sim, somos tão resilientes como os Extremófilos e os Tardígrados. Fecundamos essa terra, como polens às flores. Mas a brutalidade é algo que nos acompanha — como no caso de alguns fungos, que também acometem as flores — desde que chegamos aqui….agarrados a estrela da manhã. Trouxemos o holocausto. O céu se encheu de uma nuvem negra…

Em uma rua próxima a minha, mãe e filha foram estupradas por um marginal, veja você… Eu estava no trabalho quando minha esposa me ligou em prantos. Lágrimas também romperam em minha face sem que eu as sentisse… O pai, com um revolver na cabeça, assistiu a cena toda enquanto o marginal concluía o ato…veja você…

“Sangue de Cristo tem poder!”; disse o vendedor, que então puxou o braço de volta. Pediu parada e desceu.

— Contou-me toda aquela história com os olhos acesos, o estrangeiro. Enquanto esteve ao meu lado. Dentro do ônibus.

 

* O conto “O Estrangeiro” teve inspiração na teoria da “Panspermia”(Teoria que explica que a vida pode ser distribuída no universo através de meteoros, asteroides e planetoides) e mais descaradamente em um artigo que li do Phd em ecologia, Ellis Silver, baseado em seu livro “Humanos não são da terra”. Para fundamentar a sua teoria o Dr.Silver aborda questões relacionadas a anatomia dos seres humanos  que, segundo ele, incompatíveis com o ambiente do planeta em que vivemos; e que a terra  seria uma espécie de prisão ou exílio dessa espécie, dado as suas características violentas.
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