As 3 facções e o ciclo de vinganças por trás de epidemia de homicídios em Mossoró

Nas quatro horas e meia de viagem de ônibus entre Natal e Mossoró, você provavelmente vai ouvir três histórias sobre o município do semiárido do Rio Grande do Norte: 1) faz tanto calor na cidade que a água do chuveiro já desce quente sem você precisar ligar a eletricidade; 2) Mossoró foi o único local do Nordeste que expulsou o bando de cangaceiros liderado por Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião; e 3) a violência está matando muita gente em Mossoró.

Elas não são apenas anedotas: 1) às 11h do dia 18 de julho, pleno inverno, fazia 35ºC em Mossoró e a água do chuveiro caía quente sem ajuda; 2) em 1927, Lampião tentou saquear a cidade, como fez com outras dezenas, mas foi rechaçado a tiros por um grupo de moradores que se entrincheiraram até em uma igreja.

Nas quatro horas e meia de viagem de ônibus entre Natal e Mossoró, você provavelmente vai ouvir três histórias sobre o município do semiárido do Rio Grande do Norte: 1) faz tanto calor na cidade que a água do chuveiro já desce quente sem você precisar ligar a eletricidade; 2) Mossoró foi o único local do Nordeste que expulsou o bando de cangaceiros liderado por Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião; e 3) a violência está matando muita gente em Mossoró.

Elas não são apenas anedotas: 1) às 11h do dia 18 de julho, pleno inverno, fazia 35ºC em Mossoró e a água do chuveiro caía quente sem ajuda; 2) em 1927, Lampião tentou saquear a cidade, como fez com outras dezenas, mas foi rechaçado a tiros por um grupo de moradores que se entrincheiraram até em uma igreja.

Mas, atualmente, o último ponto é o mais importante para quem vive em Mossoró: 3) como uma cidade média do interior do Nordeste, com 294 mil habitantes, pacata até 20 anos atrás, aumentou suas taxas de homicídios a níveis altíssimos e, hoje, convive com um conflito entre três facções criminosas?

A violência em Mossoró é uma espécie de símbolo do que aconteceu no Nordeste nos últimos anos.

O crescimento econômico e populacional foi acompanhado pela chegada de redes criminosas do Sudeste, como o paulista Primeiro Comando da Capital (PCC) e o carioca Comando Vermelho.

Esse movimento gerou quadrilhas locais menores, que atuam em contraposição às “gangues nacionais”. Esses grupos passaram a se digladiar pelo controle de territórios e do tráfico de drogas, fomentando uma explosão de homicídios nas capitais, mas também em cidades menores do interior, como Mossoró. Por outro lado, em geral, os investimentos dos governos nas forças policiais não acompanharam a onda de violência.

O resultado desse caldo explica o aumento de 64% na taxa de mortes violentas no Nordeste entre 2007 e 2017, segundo dados do Atlas da Violência, publicação anual do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. No mesmo período, esse índice caiu 17% no Sudeste.

Já Mossoró tinha 213 mil moradores em 2003, segundo o IBGE, e registrou 50 homicídios naquele ano – 23 casos para cada 100 mil pessoas. No ano passado, porém, foram 236 assassinatos em uma população de 294 mil habitantes – 80 mortes violentas por 100 mil. Ou seja, enquanto o número de moradores do município cresceu 38% nesse período, a taxa de homicídios aumentou 247%.

Esses dados de Mossoró, segunda maior cidade potiguar, refletem uma crise de segurança pública vivida pelo Rio Grande do Norte, hoje o Estado mais violento do Brasil. Entre os municípios do RN, Mossoró só perde em violência para a capital, Natal.

Em 2017, o Rio Grande do Norte registrou 62,8 mortes violentas por 100 mil habitantes, o maior número do país. Foi o Estado em que essa taxa mais cresceu desde 2000 – alta de 556%. Como comparação, em São Paulo, ocorrem 10 mortes por 100 mil; no Rio de Janeiro são 38 casos.

Vingança entre famílias

Quem estuda ou reporta a violência em Mossoró costuma dizer que uma parte dos homicídios se explica por uma espécie de ciclo de vinganças, fomentado pela precariedade da polícia e do judiciário locais. Em uma cidade média, onde os bairros e a população não são tão grandes, é comum que algozes e parentes de vítimas se conheçam e até se encontrem com certa frequência.

“O que acontece em Mossoró é que os familiares do morto às vezes moram no mesmo bairro ou na mesma rua do assassino”, explica Cezar Alves, jornalista que cobre a violência na cidade desde os anos 1990.

“Depois da primeira morte, o pai da vítima fica com medo de ser morto também, porque ele vê o assassino do filho todos os dias na rua. E o assassino também teme morrer por vingança. Aí cria essa tensão entre eles. O pai, por medo ou por vingança, vai lá e mata o assassino do filho”, diz. “Às vezes, a família da segunda vítima se vinga também, gerando outras mortes. Há casos em Mossoró em que um único crime causou depois outros seis assassinatos.”

Há histórias emblemáticas com esse perfil de vendeta. Uma delas é o do gari Luis, de 38 anos. “Minha desgraça começou em 24 de dezembro de 2009”, conta à BBC News Brasil, nos fundos de sua casa em um bairro pobre de Mossoró.

Naquela véspera de Natal, seu filho Vitor, de 13 anos, brincava com amigos na frente de casa. Outro rapaz, vindo de uma festa, caiu bêbado perto do grupo. Para se divertir, os adolescentes maquiaram o rosto do jovem embriagado, na época com 23 anos.

“Quando acordou, esse rapaz se revoltou com a brincadeira. Ele perguntou quem tinha pintado o rosto dele e alguém apontou o meu filho. Então, esse cara pegou uma arma e matou meu menino com um tiro no meio da sobrancelha. Foi uma perversidade, uma covardia”, conta Luis. “Fiquei um bocado de tempo com uma coisa pesada na cabeça, me deu muita vontade de fazer tanta coisa ruim nessa vida.”

A morte precoce de Vitor Leonardo não era o fim de mais uma tragédia em Mossoró, porque Luis não conseguiu esquecer as “coisas ruins” que tinha na cabeça. O assassino de Victor foi condenado a sete anos de prisão por homicídio simples, porém, com a progressão de pena, voltou ao bairro em poucos meses. Para piorar, o gari e o assassino de seu filho eram vizinhos.

‘Pensei: pronto, vou matar’

Luis conta que diariamente via o jovem que matou seu filho. “Eu tinha muito medo de ele me matar também”, diz. “Nos forrós, ele ficava me encarando. Chegou um momento em que não aguentei mais.”

Era a noite de 13 de dezembro de 2015. Luis resolveu ir a um forró perto de casa.

Na festa, o gari encontrou novamente o algoz da família. Segundo ele, o jovem o encarou e, depois, esbarrou em seu braço. Ele viu o gesto como uma ameaça. “Foi o fim. Pensei: ‘pronto, vou matar ele’. Voltei para casa e peguei o ferro (arma). Eu estava muito bêbado, o Satanás tomou conta. Dei três tiros. Quando você mata alguém, não passa nada na cabeça, só o demônio.”

Preso em flagrante, Luis depois foi solto para aguardar o julgamento em liberdade – o julgamento deve ocorrer em novembro. “Se tiver de pagar, vou preso, sim, sou cabra homem. O que peço é uma oportunidade, a mesma chance que a Justiça deu para quem matou meu filho.”

Enquanto o julgamento não chega, ele ainda encontra na rua os parentes do jovem que matou: vizinhas, as famílias vivem a tensão de uma nova faísca que cause mais mortes. “Quando me veem, eles me esculhambam, me chamam de assassino. Se forem me matar, eles devem lembrar o que o filho deles fez ao meu menino. Se quiserem continuar essa guerra, não posso fazer nada. Está 1 a 1.”

Problemas de investigação

Problemas de investigação e, por consequência, a impunidade, são outros fatores que estimulam as vinganças em Mossoró, segundo Ítalo Moreira, promotor criminal da cidade desde 2003.

“Como a polícia não se estrutura para melhorar as investigações, não há uma produção de boas provas. Na maioria dos casos, nós dependemos de depoimentos, o que dificulta a condenação dos responsáveis. Essa impunidade aumenta o ciclo de violência, porque o sujeito que matou volta para a rua, podendo matar outros ou morrer em uma vingança. E quem é parente da vítima pensa: ‘não foi feita a Justiça'”, explica.

Moreira diz que, por falta de provas, já pediu a jurados absolvição de réus que tinha certeza de serem culpados por mortes violentas. “Isso acontece frequentemente. Se as provas não são boas, mesmo convicto da culpa, não posso pedir a condenação”, diz.

De fato, os números de investigações de homicídios não são nada animadores para a população de Mossoró. A cidade tem apenas dois delegados e seis agentes para resolver todos os crimes contra a vida. Isso significa que, só em 2018, cada delegado ficou responsável por solucionar 118 assassinatos, em média – isso sem contar os casos anteriores.

Segundo o delegado Rafael Gomes Arraes, hoje, a delegacia de homicídios, criada em 2012, tem 700 inquéritos sem resolução. Ou seja, a polícia não conseguiu apontar os autores de 700 casos de mortes violentas em Mossoró (o número de vítimas deve ser maior, pois uma investigação pode se referir a mais de uma pessoa). Por consequência, os culpados por esses crimes ficarão impunes.

“É frustrante, você se sente um incapaz”, diz Arraes, na delegacia. “Geralmente, por dia recebo duas ou três famílias que vêm cobrar resultados. A gente fala a verdade: a situação é essa, precária. Há muito tempo estamos esperando que a polícia seja priorizada em Mossoró.”

Neste ano, no entanto, a delegacia até melhorou as estatísticas, mesmo que de forma residual. De janeiro a junho, ela enviou 61 inquéritos concluídos à Justiça – no mesmo período do ano passado, foram apenas 49.

Em nota, a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do RN reconhece que o efetivo da Polícia Civil está defasado – o Estado deveria ter 73% mais policiais civis do que o staff atual, diz o governo. A pasta afirma que pretende realizar novos concursos públicos em breve.

A expansão do crime

Além do ciclo de vinganças, Mossoró tem outro problema: três facções criminosas disputam espaço pelo controle da venda de drogas em vários bairros. “Eu diria que 90% dos assassinatos na cidade têm ligação direta ou indireta com o tráfico”, diz o delegado Arraes.

A forte presença dessas redes se explica por um movimento iniciado na década passada, quando o PCC e o Comando Vermelho expandiram seus negócios para o Norte e Nordeste.

Os dois grupos passaram a atuar no atacado da droga, repassando os produtos para quadrilhas menores venderem nas ruas.

A chegada das facções, levando a uma maior oferta de drogas e armas, aumentou a rivalidade entre traficantes. Uma resposta à presença de paulistas e cariocas foi a criação, no Rio Grande do Norte, do Sindicato do Crime, formado por principalmente por jovens locais.

“Essa dinâmica gerou muitos conflitos pelo controle de territórios urbanos. Houve uma grande entrada de armas, muitas delas de grosso calibre, para alimentar essas disputas”, explicou Luiz Fábio Paiva, professor de sociologia e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará, em entrevista recente à BBC News Brasil.

O confronto entre PCC e Sindicato do Crime causou um massacre de ao menos 26 presos no presídio de Alcaçuz, região metropolitana de Natal, em janeiro de 2017.

As mortes ressaltaram o caos vivido pelo sistema carcerário do Estado nordestino, superlotado e controlado por esses grupos. Um levantamento do governo federal relativo a junho de 2016 – os últimos dados disponíveis – aponta que o Rio Grande do Norte tinha 4.265 vagas nas prisões, mas abrigava 8.696 detentos, mais que o dobro da capacidade.

Disputa por territórios

No caso de Mossoró, a rivalidade entre PCC e Sindicato do Crime foi agravada pela recente chegada dos Guardiões do Estado, rede criminosa do Ceará. Nos bairros mais pobres, as siglas das três facções foram pintadas nos muros e postes, indicativo de quem controla – ou diz controlar – cada um dos territórios.

Como fica no meio do caminho entre Fortaleza e Natal, além de ter um porto próximo, a cidade se tornou um ponto estratégico para rotas de tráfico, segundo policiais e pesquisadores.

Na região também existe um presídio federal, que abriga Fernandinho Beira-Mar e outros líderes de quadrilhas. Há quem diga que a presença de criminosos de outros Estados em Mossoró ajudou a disseminar a violência, pois outras figuras do crime teriam migrado para as cercanias da cidade para ficar próximas da detenção. Mas essa tese não é consensual: policiais e promotores dizem que há como provar essa ligação.

“Com o crescimento urbano e econômico do Nordeste, o crime encontrou novas oportunidades de negócios”, diz Thadeu Brandão, coordenador do Observatório da Violência do Rio Grande do Norte (Obvio) e professor de sociologia da Universidade Federal Rural do Semi-Árido.

“Essas redes atuam em zonas com precárias estruturas educacionais, prisionais, de segurança, de saúde e até viária. Aí elas encontram adolescentes pobres, com educação reduzida e pouquíssimas oportunidades de emprego. Parte deles, infelizmente, vai servir de mão de obra para o crime, tornando-se também as maiores vítimas.”

O perfil dos mortos no Rio Grande do Norte confirma essa característica citada por Brandão. Segundo o Obvio, entre 2011 e 2018, cerca de 85% das vítimas de mortes violentas no Estado eram pretas ou pardas, 49% tinham entre 18 e 29 anos, 31% não tinham sequer completado o ensino fundamental, 54% não exerciam atividade remunerada e 39% ganhavam até dois salários mínimos.

Polícia Militar sem estrutura

O aumento da presença das facções criminosas não encontrou crescimento correspondente da polícia ostensiva em Mossoró.

Segundo o coronel Francisco Alvibá, comandante da Polícia Militar na região, o município tinha 600 policiais militares em 2004, um efetivo aproximado de 120 agentes atuando diariamente.

Mas, com aposentadorias e falta de concursos públicos para recrutar novos agentes, esse número caiu pela metade em 15 anos.

“Hoje, a cidade cresceu, a violência cresceu, há uma guerra entre as facções e nós só temos 300 PMs em Mossoró. Com as escalas, isso dá 40 policiais por dia para uma cidade de quase 300 mil moradores. E isso porque nós pagamos um salário extra para o policial trabalhar no dia da folga dele, senão seria menos ainda”, explica.

O governo do RN também reconheceu que o efetivo da PM está defasado. E, em nota, afirmou que espera contratar novos 1 mil policiais no segundo semestre.

‘A bala perdida no tiroteio’

Mas a guerra de facções também faz vítimas que nada têm a ver com esse conflito em Mossoró. É o caso da universitária Jéssica, de 30 anos.

Em uma madrugada do ano passado, ela enviou a última mensagem para sua mãe, Maria (os dois nomes são fictícios, a pedido da família): “Já estou indo para casa, mainha.”

A estudante estava saindo de uma festa quando, na mesma rua, uma das facções atacou membros da quadrilha rival. No meio do tiroteio, uma bala perdida atingiu a cabeça de Jéssica – ela tinha dois filhos pequenos.

“Para mim, se o assassino dela pegasse 1.000 anos de cadeia não seria suficiente, porque ele acabou com a minha família”, diz Maria à BBC News Brasil, em um restaurante no centro da cidade.

“Minha filha não era criminosa e não tinha motivo para ela ter morrido dessa forma. Ela só estava passando na rua e virou vítima dessa guerra que está acabando com Mossoró. Se eu pudesse, fugiria dessa cidade e nunca mais voltava”, afirma Maria, tentando segurar as lágrimas com a ponta dos dedos.

‘A chuva de balas’

De certa forma, o conflito atual ecoa a história de Mossoró, uma cidade marcada e até celebrada por um tiroteio ocorrido nove décadas atrás. Existe até uma festa anual, chamada “Chuva de Balas”, para comemorar o dia em que os mossoroenses expulsaram Lampião.

Antes de invadir a cidade para saqueá-la, em junho de 1927, o “Rei do Cangaço” tinha recebido uma carta de um amigo, que afirmava que Mossoró era uma cidade facilmente conquistável, porque seu povo era “pacífico, mofina e incapaz de se defender”.

O então prefeito, Rodolpho Fernandes, resolveu contrariar o prognóstico e enfrentar o mais temido bandido da época. Ele juntou moradores, comerciantes e civis e comprou armas para defender a cidade do bando cangaceiro.

No 13 de junho, Lampião entrou em Mossoró, mas foi recebido por uma “chuva de balas” – parte da resistência se abrigou até em uma igreja e, lá de dentro, disparou contra os invasores.

O até então invencível Virgulino Ferreira da Silva fugiu para não morrer. Mais de 92 anos depois, os buracos das balas disparadas contra a igreja ainda são visíveis nas paredes, como uma relíquia.

As marcas de tiro da atual violência em Mossoró são mais difíceis de contar.

Fonte: BBC News Brasil

Imagem: iStock

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