O Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 21ª Região, com sede em Natal (RN), foi palco de um julgamento inusitado para os trabalhadores potiguares, em especial para a parcela LGBT. O supermercado atacadista Assaí foi condenado, em 2ª instância, a indenizar o ex-operador de caixa Udson Mafra Sbrana, 34 anos, por danos morais. Segundo os autos do processo, o resultado foi provocado pela constatação de uma série de discursos e atos discriminatórios contra o ex-funcionário em razão de sua orientação sexual.
Em meio a risos de deboche e olhares de reprovação de colegas de trabalho e de um superior hierárquico, Udson foi alvo, repetidas vezes, de expressões como “voz fina”, “bicha”, “viado” e “gay” nas instalações do Assaí. Esse tratamento foi relatado pela vítima e por quatro testemunhas ouvidas durante o processo movido na Justiça do Trabalho.
“Uma coisa é você trabalhar quase nove meses dentro de uma empresa que te oferece um ambiente de trabalho sadio. Parece pouco tempo. Outra coisa é você trabalhar numa empresa com um ambiente insalubre para seu psicológico e para seu físico até, sendo alvo de chacota diária durante todo esse período”, desabafa Udson.
Antes de ser demitido do Assaí, em março de 2015, Udson afirma ter comunicado aos seus superiores, em vários momentos, as ofensas pelas quais vinha passando cotidianamente.
“Nas várias vezes que eu cheguei para a chefe do meu setor, para as fiscais e até para o setor responsável pela parte de prevenção e segurança [do trabalho], ninguém fez nada. Pediam-me calma, diziam que iriam fazer reuniões, mas nunca foi feito nada em meu favor. Várias e várias vezes eu chegava para desabafar com as pessoas da própria empresa chorando, porque eu não aguentava mais, eu queria dar um basta. As pessoas não têm noção do que é chegar ao refeitório do seu trabalho para comer e sair atacado por ofensas, chorando sem sequer conseguir me alimentar”, disse.
Nos autos do processo, o Assaí negou que Udson tenha sofrido qualquer tipo de discriminação no ambiente laboral enquanto trabalhou na sua loja da BR 101, em Natal/RN. Apesar da negativa, os advogados de defesa da empresa não apresentaram provas contrárias suficientes. Na condenação em primeira instância, a sentença da Juíza do Trabalho Derliane Rego Tapajós considerou o Assaí culpado.
O supermercado foi condenado em março de 2018 a arcar com uma indenização de R$ 30 mil. Conforme a decisão judicial, foi considerado o porte do estabelecimento, pertencente ao grupo Casino, um dos maiores grupos empresariais do Brasil e do mundo, e o longo período em que Udson esteve submetido às situações de “constrangimentos psicológicos e humilhações no local de trabalho, inclusive em face da sua orientação sexual, capazes de caracterizar o assédio moral”.
Indenização
A defesa do Assaí recorreu da decisão e o supermercado foi condenado, mais uma vez, em 2ª instância no TRT/RN, na primeira semana de abril deste ano. O voto do desembargador Eridson João Fernandes Medeiros recomendou, contudo, a redução da indenização para R$ 15 mil, buscando evitar suposto enriquecimento. No entanto, o voto da desembargadora Maria do Perpetuo Socorro Wanderley de Castro convenceu a maioria dos desembargadores, que a acompanharam na manutenção do valor original da indenização.
Em seu voto, a desembargadora afirmou manter o valor “ainda que elevado [para esse tipo de causa], porque se trata de medida importante contra a interferência sobre orientação sexual de pessoas”. Em suas palavras, “a homofobia, disfarçada em brincadeiras e caçoadas, atenta contra o direito humano à autodeterminação. Cabia à empresa adotar medidas enérgicas”.
Para Udson, técnico em Guia de Turismo e graduado em Turismo, o valor foi justo, mas não capaz de promover qualquer enriquecimento. Segundo ele, a indenização ainda não foi paga, mas já está integralmente comprometida com o pagamento de dívidas geradas durante os quase três anos em que esteve desempregado e com projetos profissionais futuros.
Jurisprudência
Apesar de incomum, a decisão do TRT/RN lembra a condenação da Ricardo Eletro, que teve que indenizar em R$ 30 mil um de seus vendedores por danos morais, também vítima de ofensas homofóbicas. A discriminação foi praticada por um gerente de vendas de uma das lojas da rede, em Vitória (ES). A decisão unânime da Sexta Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) negou recurso e, além da indenização, a empresa teve que arcar, durante um ano, com pagamentos mensais de R$250 para auxiliar o vendedor na compra de medicamentos para tratamento de depressão.
O diretor da divisão de Comunicação Social do TRT/RN, Ciro Pedroza, afirmou que não conseguiria precisar se a decisão judicial em favor de Udson era inédita no Rio Grande Norte, mas, em suas palavras, “com certeza, é uma decisão fora da curva do que é usual”.
Julgamento sobre criminalização da homofobia foi adiado
A decisão da corte potiguar assume uma importância destacada diante da paralisação do julgamento da criminalização da LGBTfobia no Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO nº 26 e do Mandado de Injunção – MI nº 4733. Não há data para a retomada do julgamento. Dos 11 ministros da Corte, quatro votaram pela equiparação homofobia ao crime de racismo.
Essa relevância amplia-se ainda mais se são considerados alguns dados relativos às vidas LGBT. O relatório do estudo “População LGBT morta no Brasil”, por exemplo, concluiu que, em 2018, 420 pessoas LGBT no Brasil foram assassinadas ou cometeram suicídio, vítimas da LGBTfobia.
Outra pesquisa, desta vez realizada pelo Planta o Plomo, revelou que, em 2017, uma a cada cinco empresas brasileiras recusava-se a contratar homossexuais. A mesma pesquisa revelou que cerca 70% dos trabalhadores já haviam presenciado algum tipo de violência verbal, psicológica ou física no ambiente de trabalho, motivada por discriminação por orientação sexual, ou em outras palavras, LGBTfobia.
Para o professor e pesquisador da UFRN, Fellipe Coelho-Lima, da área de Psicologia Social do Trabalho, “a LGBTfobia é um problema enfrentado em boa parte dos ambientes de trabalho e seus impactos sobre os trabalhadores são imensos. Implicam no impedimento de se criar relações interpessoais saudáveis no trabalho até a geração de quadros de ansiedade e depressão associados à exposição contínua às diversas formas de violências derivadas da LGBTfobia. Ainda que algumas empresas tenham formulado políticas de promoção da diversidade sexual no trabalho, as ações associadas acabam sendo restritas a algumas palestras, sem atuar de forma sistemática sobre o comportamento dos gestores e demais membros da equipe. É preciso ir além.”
Diante desse cenário e do resultado da sua causa, Udson diz acreditar que seu processo simboliza um marco histórico no nosso estado, para ele e para as demais pessoas LGBT:
“Na época em que eu passava por isso na empresa, eu chorava, orava a Deus e não entendia porque eu estava passando por tudo aquilo. Hoje eu sei. Minha vida, minha história e meu processo estão em benefício de uma causa muito maior, a de impedir que outras pessoas passem pelo que passei. Que tudo isso sirva para fomentar políticas públicas e privadas de combate à LGBTfobia.”
Em silêncio, Assaí/RN não se pronuncia sobre o caso
Até o fechamento desta reportagem, o supermercado Assaí não havia se pronunciado sobre o caso, inclusive se recorrerá da decisão em terceira instância. A reportagem entrou em contato com a loja do Assaí, na BR 101, em Natal/RN, onde Udson Mafra trabalhou, mas um funcionário informou que todos os gestores estavam em reunião e não poderiam atender. Procuramos o escritório de advocacia Rocha, Marinho e Sales, responsável pela defesa da empresa, mas suas unidades do Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará alegaram que não estavam autorizados a falar sobre o caso.
A Unidade do Ceará, responsável pelo processo, disse que repassou nossos contatos na segunda-feira (08/04) ao escritório da empresa em São Paulo, informando que adiaríamos o fechamento da reportagem até a manhã do dia 09/04. Por fim, um funcionário responsável pela página do Facebook do supermercado informou-nos um e-mail da área de imprensa do grupo empresarial para o qual enviamos mensagem no dia 09/04, por volta das 10h, com as perguntas sobre o caso e contatos da reportagem. Fomos contatados pela assessoria de comunicação, também instalada em São Paulo, por volta das 11h, a qual informou que apenas esse setor poderia responder pela empresa e que iria averiguar o caso. Destacamos que teríamos cerca de uma hora para o fechamento desta reportagem e reiteramos nosso desejo de registrar um pronunciamento do Assaí, mas não obtivemos respostas específicas por telefone ou por e-mail até o início da noite do dia 09/04.
Fonte: Agência Saiba Mais
Imagem: Agência Saiba Mais