Estava no estacionamento do BW Shopping fumando meu cigarrillo, cansado após um dia estafante de trabalho, quando, de chofre, senti uma mão no meu ombro. “Como vai, nobre amigo? ”, disse-me João, com quem estudei Direito na universidade há muito tempo; fazia pelo menos uns três anos que não nos encontrávamos. “Que satisfação em revê-lo, rapaz”, respondi cordialmente. Conversamos bem rápido, pois ele estava apressado, e intercambiamos os números dos nossos celulares, a fim de nos comunicarmos por meio do WhatsApp assim que pudéssemos.
Um dia depois, batemos um papo pelo aplicativo, e João, num tom efusivo e cerimonioso, tão característico de sua personalidade, convidou-me para participar de um grupo que reunia ex-colegas de curso, a maioria dos quais não via havia muito, mas muito tempo mesmo. Fiquei exultante com a ideia de entrar em contato com essas pessoas, relembrar os velhos tempos de faculdade, espairecer um pouco, em suma. Afinal, como se sabe, vivemos para trabalhar e pagar contas; tudo aquilo que sai da rotina é, dessarte, bem-vindo e salutar.
Em um primeiro contato, pude saber um pouco sobre a vida de cada um dos membros do grupo. Até que foi divertido, e, na euforia do momento, revolvemos marcar uma confraternização para o final de janeiro, em algum barzinho simples e aprazível da nossa cidade, onde poderíamos conversar bem à vontade. Nada mau para o prelúdio de um reencontro entre antigos companheiros de graduação.
Tudo começou no momento em que Teodoro lamentou a recente morte de Marília, antiga colega de Direito ceifada prematuramente por uma rara infecção. Ele aproveitou o ensejo para mencionar que publicaria um livro, fruto de sua tese de doutorado, e que colocaria na obra um agradecimento todo especial para a “saudosa colega” – a qual, na realidade, nem era tão saudosa assim (quer ser elogiado? Morra!). Conhecendo o vivente de outros carnavais, já fiquei com uma pulga atrás da orelha, um tanto ressabiado, mas, como já disse, deixei para lá, relevei. Quem dera tivesse parado por aí…
No dia seguinte, quando todos falávamos sobre Marcos, outro ex-colega de graduação, que perdera a sanidade e se transformara numa espécie de fanático religioso, nosso amigo fez questão de narrar um encontro com ele. O propósito, como ficou claro e evidente, não era discorrer acerca do desequilíbrio mental do rapaz, mas, sim, alardear, para todos os membros do grupo, outra proeza no mundo encantado da academia. “Marcos me falou que já cursara quatro graduações. Eu o aconselhei a ‘verticalizar’ esses estudos, embarcando numa dissertação de mestrado e, em seguida, numa tese de doutoramento. Não sei se vocês sabem, mas eu já sou pós-doutorando”. Minhas suspeitas confirmaram-se incontinente. Então, pensei: até quando aguentarei esse cidadão?
Não precisei esperar muito para tomar minha decisão. Algumas horas depois, houve uma dupla demonstração de egolatria e presunção intelectual. Teodoro divulgou uma foto de uma área de lazer situada na periferia da cidade. Fez questão de contar um pouco da história daquele lugar, resultado de uma parceria com um grupo empresarial estrangeiro, e lamentou o fato de que, a despeito da excelência da construção, poucos sabiam de sua existência. Em seguida, veio com esta: “Sei dessa informação porque faço parte da equipe técnica do atual governo do Estado”. Bravo! Um homem de múltiplos talentos! Num átimo, à guisa de grand finale, ele postou sua mais nova produção acadêmica no grupo, ostentando seu relevo para o estudo das leis brasileiras na época do Segundo Reinado. É óbvio: estávamos lidando com um gênio, alguém que se considerava imprescindível para a manutenção da nossa bela ordem social! Impossível não se lembrar de “Ouro de tolo” e “Dr. Pacheco”, do saudoso Raulzito. Não deu outra: para preservar meu equilíbrio emocional, tirei o time do grupo, sem quaisquer explicações aos demais membros.
Não sou psicólogo, tampouco tenho o menor talento para exercer esse ofício, mas, no meu amadorismo quanto à compreensão do comportamento humano, arrisco, aqui, uma tentativa de explicação do fenômeno Teodoro. Há quem afirme que as pessoas sobremodo inseguras, cuja autoestima é tênue como um bichinho do mato, defendem-se de seus semelhantes lançando mão de fanfarrices, concentrando toda a atenção nos seus putativos feitos e conquistas. Como vimos, nosso amigo segue à risca essa regra. Qualquer assunto comentado entre nós era motivo para ele contar vantagem, enaltecer o próprio intelecto, mencionar uma “façanha no mundo das letras”, mesmo num simples grupo de WhatsApp, cuja função é meramente lúdica: desviar-nos um pouco dos pesados encargos ordinários.
A vida acadêmica tem sua importância, não se pode negar, mas dentro de um contexto adequado, sem espírito grandiloquente, senão se transforma em academicismo, ideologia que põe a universidade numa espécie de pedestal. Ademais, é sabido que as informações acadêmicas estão disponíveis na Plataforma Lattes. Os interessados, pois, podem buscá-las até mesmo num simples celular. Ou seja, propalá-las não passa de uma tremenda falta do que fazer. Uma última palavra: ter títulos acadêmicos, por si só, não garante a ninguém o status de pensador; é necessário, mais do que isso, dispor de boa bagagem de leitura e amplo repertório de conhecimentos, qualidades que muitos pós-doutores, doutores e mestres, infelizmente, não têm.
Cosme Ferreira M. Neto é historiador, professor do IFRN, colecionador e membro titular do Museu do Videogame Potiguar