Século XXI: a era da mediocridade cultural

Ainda nos anos 1990 havia qualidade na cultura de massa. Programas como Globo de Ouro, Raul Gil, Sr. Brasil, Viola Minha Viola e até mesmo o Domingão do Faustão, davam espaço para os grandes artistas nacionais. Caetano e Gil, Djavan, Almir Sater, Sérgio Reis, Renato Teixeira, Barão Vermelho, Kid Abelha eram figuras sempre presentes.

Ainda tínhamos a MTV com uma grade de qualidade que agradava a todos os gostos. Era comum eu assistir clipes de Guns ‘n’ Roses, Ozzy Osbourne, Iron Maiden, Scorpions, UFO, Faith no More. Bandas que já amava desde antes da vinda da emissora e outras que conheci por meio dela.

Mike Patton, vocalista do Faith no More, no clipe da música Epic

Em contrapartida outro fenômeno surgia nessa época, era a cultura descartável. As famosas músicas modinhas de verão começaram a surgir, fosse uma Macarena ou uma Dança da Garrafinha, elas estavam lá, com elas veio a mídia de massa propagando essa cultura, tão descartável quanto um guardanapo de papel que após seu uso nada mais se torna além de lixo (com a vantagem do guardanapo ser, pelo menos, reciclável!).

A explosão da cultura descartável

A partir da virada do século houve um avanço enorme na tecnologia. Gênios do século XX mudaram completamente a tecnologia do século vindouro. Steve Jobs mudou o modo como usamos nossos celulares, Stephen Hawking mudou o modo como vemos o universo. Foi um verdadeiro salto técnico-científico para a nova era.

Porém, culturalmente a regressão foi gritante. No Brasil programas como o Domingo Legal do Gugu e Caldeirão do Huck explodiam em uma ode à bizarrice, fosse pelo conteúdo normal dos programas como a Banheira do Gugu ou a exploração e objetificação da mulher no Caldeirão, fosse pelas apresentações artísticas de baixíssimo nível, sempre mostrando artistas da moda e com pouco conteúdo (muitas vezes conteúdo nenhum). Era isso que tínhamos de programação, nos finais de semana das TVs abertas na virada do século.

Com o passar do tempo, tais conteúdos acabaram por se propagar e virar a regra na programação aberta. Os poucos programas que apresentavam algum conteúdo ou se adequavam, ou sairia do ar. A programação semanal da TV aberta virou um verdadeiro circo dos horrores e gradativamente foi tomada pelos bailes funks e outros estilos descartáveis, deixando menos espaços para artistas de verdade, que fazem arte de verdade.

Nessa mudança até a MTV – emissora voltada inteiramente para a música – foi abalada. De uma hora para outra sua programação mudou para um apanhado de realities shows importados da MTV gringa e também a programação musical acompanhou essa tendência da mídia de massa descartável, deixando de lado toda a qualidade de propagador multicultural que tinha no seu tempo áureo. Resultado, em pouco tempo a MTV Brasil faliu e saiu do ar.

Total ausência de conteúdo

Cada vez mais o conteúdo propagado pela mídia de massa foi ficando raso, até não sobrar nada, um completo vazio. A programação televisiva ficou assim, grande parte devassando a vida de famosos, outras tentando ganhar audiência explorando a desgraça alheia e a música… ah, isso parece não existir mais.

Os grandes “artistas” aparecem mais como figuras do bizarro do que qualquer outra coisa. Não existem mais letras, estas se vulgarizaram à exploração do corpo, objetificação do ser e o esbanjar com os prazeres da vida. O talento, se existe é pouco. São endeusados ou pela aparência ou pela representatividade de minorias. Havendo uma distância enorme (de talento e técnica) entre um Ney Matogrosso e um Pablo Vittar, por exemplo.

https://www.youtube.com/watch?v=fKZ9XR_QU-k

Enquanto Cazuza cantava sobre seus sentimentos, e até sobre seu estilo de vida autodestrutivo, como, por exemplo, na música Mal Nenhum (composta em parceria com Lobão): “Eu não posso causar mal nenhum, a não ser a mim mesmo”; os grandes artistas da atualidade falam essencialmente de sexo, bunda, cachaça. Objetificam o ser e martelam o tempo todo em nossas cabeças apenas os sentimentos mais primordiais, causando uma verdadeira bestialização do homem.

Bestialização da massa

Bestializar, segundo o Léxico, significa “fazer com que fique ou se torne besta ou imbecil; ação de abarbarar, abrutalhar, barbarizar ou embrutecer”. É o que vemos em nossa sociedade, esta, tornando-se cada vez mais bruta, bárbara. Sentimentos como empatia ou gratidão estão cada vez mais ausentes.

Imagem: Revista Veja

O amor então? Este nem se fala. Amar o próximo está cada vez mais difícil, pois a bestialização do homem impede. Nesse processo os sentimentos que mais afloram são o desejo, a pulsão, usar o próximo como um simples objeto de satisfação – saciar o desejo – e depois descartá-lo. Características puras de um narcisista!

Mas um verdadeiro narcisista consegue esconder tudo isso dentro de um discurso charmoso, encantador. Um bestializado não. Eis o perigo desse processo. Já imaginou uma sociedade totalmente bestializada, sem acesso a emoções como empatia, apenas pensando em si e na busca de saciar seus desejos mais animalescos? Seria um verdadeiro caos!

Mas, por que a mídia de massa e a indústria cultural investem tanto nesse processo. Qual a vantagem deles em se ter uma sociedade culturalmente bestificada?

Muito além do panis et circencis

Sabe-se que os meios de comunicação em massa, de forma direta ou subliminarmente, lavam as pessoas a adotarem o pensamento que eles desejam. Então, tornar toda uma massa social em criaturas movidas a pulsões, facilita e muito esse processo.

Arte: Ivan Cabral

Tudo isso serve para movimentar uma indústria bilionária, a indústria cultural. Para eles não faz sentido vender arte, pois ela é eterna e qual seria o sentido para esta indústria vender algo que o consumidor compraria somente uma vez?

Tornar a cultura descartável faz mais sentido para essa indústria, pois vende mais e em quantidade infinitamente maior. Afinal, do que adiantaria vender milhões de cópias do novo álbum de um artista verdadeiro, com músicas que tocam a sua alma, se você pode pegar 10 “artistas” fabricados, com um conteúdo exatamente igual ao outro, e vender milhões de cada um? O retorno financeiro é bem maior.

Uma massa bestializada não vai analisar o conteúdo da música, sua harmonia, sua letra, vai apenas consumi-la ferozmente, pois esse tipo de música atende às suas pulsões. Ela não vai buscar algo para sentir ou acalmar sua alma, tampouco refletir sobre o que o artista quis transmitir em sua obra. Vai apenas comprar, usar e descartar, assim que surgir o próximo hit do verão.

Lixo cultural: um fenômeno mundial

É um erro achar que este fenômeno acontece só no Brasil. Muito pelo contrário, este fenômeno não só acontece no exterior como nasceu por lá e, em pouco tempo, chegou em solo tupiniquim. Desde o final do século passado a indústria fonográfica americana vende a imagem de jovens bem aparentados que fazem uma música com um ritmo extremamente dançante e refrão grudento e descobriram que isso é bem rentável.

Foi a onda das boybands. Estas foram criadas por um produtor que unia jovens de boa aparência e com um pouco de talento, criava uma imagem – até personagens – em torno deles, escrevia as músicas e os lançava no mercado. Esse tipo de esquema se tornou muito mais notório nos anos 1990 quando bandas como Backstreet Boys e N’Sync estouraram no mercado mundial.

A música como produção cultural está ligada a expressão artística, a partir do momento em que é colocada no mercado, a música transforma-se numa mercadoria como outra qualquer. Os ganhos em cima deste produto são bastante significativos e permitem aos empresários investir em novos produtos, mesmo correndo algum risco de não terem retorno em função da saturação do mercado, concorrência etc. “Assim, não há necessariamente uma preocupação com a qualidade cultural do produto, mas sim com uma “qualidade” que possibilite a sua comercialização em grande escala e para tanto é preciso mobilizar toda a máquina mercadológica para massificar os consumidores com relação ao produto“, conforme aponta Renato ladeia e Célia Mattoso em artigo publicado no portal Administradores.

Então é muito mais fácil massificar um material raso, sem complexidade nenhuma e de uso instantâneo, que investir em algo mais complexo e de nicho fechado como um baião, Bossa Nova, blues, jazz ou rock. Além disso, massificando esse tipo de cultura rasa e empurrando isso goela abaixo através da grande mídia, vai trazer muito mais consumidores do produto. É um processo que enaltece o medíocre e pretere a verdadeira arte.

Ainda temos salvação!

Embora a grande mídia nos empurre goela abaixo um fluxo cultural medíocre, ainda existem muitos artistas de alto nível. Em nosso Estado mesmo há uma gama imensa de qualidade cultural, como os belíssimos quadros de Assis Costa e a poesia de François Ferreira e Múcio Amaral. E o que falar de nossos músicos? Temos instrumentistas de nível mundial como Jubileu Filho, Sérgio Groove e Stallone Terto, bandas internacionalmente conhecidas como o Deadly Fate e o Far From Alaska, além do pessoal do Plutão Já Foi Planeta, destaque em toda o país. Ainda temos os grandes Diogo Guanabara, Ticiano D’amore, Diego Brasil. Uma infinidade de grandes artistas para preencher o espaço de quem procura a verdadeira arte.

Nacionalmente ainda temos os mestres do passado que continuam em atividade. Ney Matogrosso, Barão Vermelho, Rita Lee. Mas nem só no passado podemos achar qualidade. Existem um enorme leque de grandes artistas surgindo em nosso país. A banda Maestrick é um fenômeno no cenário Rock/metal, está no segundo álbum e começando a conquistar o mundo com música de altíssimo nível e composições que unem o metal com o erudito e a música brasileira.

Além disso, dentro da própria programação aberta – de rádio e televisão – existem ótimas opções para fugir da mediocridade cultura. Programas como Prelúdio (focado em música erudita), Sr. Brasil, Viola Minha Viola (estes focados na música raiz), exibidos na TV Cultura, são uma fuga perfeita. Além das Rádios Marinha e Universitária, sempre trazendo uma programação bem selecionada, destacando a última que exalta os artistas potiguares.

Podemos estar na era da mediocridade cultural, mas só nós somos capazes de sair da caverna e ver a luz da beleza da verdadeira arte. Não precisa de muito esforço, uma simples busca rápida na internet e achamos verdadeiros tesouros. É como tem que ser a verdadeira arte, bela, tocando e iluminando nossas almas. Ars gratia artis!

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