O filme da aclamada série disponível na Netflix é uma narrativa que chamou atenção por conta de seu formato multiforme, mas ele não é tão novo ou revolucionário assim quanto parece…
Black Mirror é uma série conhecida por apresentar ao público diferentes consequências dos presságios trazidos pelas novas tecnologias que muitas vezes já estão ao alcance de nossa realidade cotidiana. No final de 2018, a Netflix disponibilizou em seu catálogo o primeiro filme associado à produção. Intitulado Bandersnatch, a película aposta numa espécie de meta-narrativa que assimila os conceitos de mídia explorados pelos próprios enredos do seriado e aplica-os ao próprio formato narrativo no intuito de fomentar uma experiência única e imersiva.
Narrativas Multiformes
É notável que uma narrativa desse naipe, como colocada em prática por Bandersnatch, está bem longe de ser algo estritamente novo. Já nos anos sessenta, por exemplo, os gamebooks, mais conhecidos no Brasil como livros-jogos já existiam e o seu leitor-jogador poderia, individualmente, conduzir uma aventura a partir de pontos pré-estabelecidos pelo texto corrido e o final era delimitado a partir das escolhas feitas ao longo da história.
Com o advento tecnológico, essa capacidade de tecer contos de progresso variável se aliou às possibilidades oferecidas pelo ambiente virtual, criando enredos completamente digitais que variam em diversos graus de complexidade definidos pelo seu conceptor. Dessa forma, em nossa era de expansão digital, os produtos narrativos midiáticos modernos ultrapassam os limites físicos e se sobrepõem cada vez mais sobre as fronteiras delimitadas da técnica das histórias lineares.
Descrevendo esse fenômeno, a estudiosa americana Janet Murray cunha o termo “história multiforme”, que, segundo ela em sua obra, Hamlet no Holodeck: O Futuro da Narrativa no Ciberespaço (Ed. Unesp, 2003), define uma história “escrita ou dramatizada que apresenta uma única situação ou enredo em múltiplas versões – versões estas que seriam mutuamente excludentes em nossa experiência cotidiana” (pág. 43). Para ela, tal formato oferece múltiplos mundos ao espectador que, para causarem impacto, tem dentre suas principais características a interação e a imersão, além de serem completamente procedimentais.
Em relação à interação, nota-se que ela é intimamente ligada à capacidade do próprio consumidor de efetuar suas próprias escolhas. Cada escolha leva a um caminho diferente e confere a impressão de poder ao leitor. A parte imersiva diz respeito à forma a narrativa consegue se sobrepor ao seu meio numa espécie de entretenimento abrangente que ultrapassa sua própria mídia — Murray descreve que uma obra se torna imersiva quando “deixamos de ter consciência do meio e não enxergamos mais a impressão ou o filme, mas apenas o poder da própria história”.
Por fim, tais narrativas são procedimentais porque, apesar de propiciarem a experiência de fazer escolhas ao público, elas ainda estão restritas às peças de história programadas pelo próprio autor original da narrativa em questão. Dessa forma, é importante ressaltar que tais narrativas não são geradas por computador de forma procedimental. Todas as possibilidades podem ser computadas e, por mais infinitas que elas aparentam ser, as possibilidades, uma hora, chegam ao fim.
A essa altura do campeonato, a relação proposta entre Bandersnatch e os videogames já deve ter se tornado aparente, visto que ambas se enquadram na conceituação básica aplicada das narrativas multiformes.
Jogos e Narrativas Multiformes
Videogames podem ser encarados como narrativas multiformes. Isso se enquadra não apenas a pérolas como Chrono Trigger (SNES) e seu leque de finais diferentes possíveis, mas também a jogos cujo enredo é imutável e pré-determinado. Tomemos Super Mario Bros. (NES) como ilustração. Apesar de não contar com uma conclusão diferente do letreiro final “Parabéns, Mario! Sua jornada chegou ao fim!”, ele ainda oferece uma gama sem-igual de possibilidades a respeito do progresso, podendo ser consideradas duas versões diferentes de um mesmo enredo caso o jogador tenha decidido pular ou não sobre um Goomba, por exemplo.
Ainda assim, Bandersnatch se aproxima de títulos com um apelo muito menor no gameplay e cuja preocupação é, de fato, contar uma história. O exemplo de maior exponência recente é a Telltale. Atuando desde 2004 e resgatando séries antigas de point and click como Sam & Max e Monkey Island, a empresa ganhou destaque ao produzir com a franquia The Walking Dead algo que foi chamado de “fantasia episódica”, em 2012.
Observando a repercussão mais do que positiva acerca do título, logo foram atrás de outras licenças que poderiam receber o mesmo tratamento que vão desde quadrinhos e filmes até os próprios videogames, como foi o caso de Tales From The Borderlands (Multi) e Minecraft Story Mode (Multi). A desenvolvedora acabou indo à falência quando se percebeu que o formato não fascinava mais tanto quanto foi no começo com The Walking Dead, caindo rapidamente no ostracismo.
Similares a Bandersnatch e aos produtos da Telltale, outro filão de entretenimento midiático atrelada à cultura dos videogames são as Visual Novels. Popularizadas no Japão, esses romances virtuais se vendem principalmente pela emaranhada teia de possibilidades narrativas, visto que muitas vezes contam com uma produção bem mais precária na parte técnica, como a ausência de animações elaboradas e uso repetitivo das imagens estáticas que, combinadas, compõem um título.
Embora muitas vezes apresentem uma história complexa, não é incomum que sejam adaptadas de maneira linear e direta na forma de animes. Steins;Gate e Ace Attorney são dois exemplos práticos que passaram por esse processo.
A grande sacada: Bandersnatch não apenas se assemelha, mas também é sobre games
O principal aspecto de interesse a respeito do filme de Black Mirror não é ao fato de utilizar um formato narrativo interativo similar ao dos games, mas também contar uma história a respeito de jogos digitais. Situado em 1984, o filme conta a história de Stefan Butler, um desenvolvedor de games cujo interesse é justamente adaptar para o ambiente digital um livro-jogo chamado Bandersnatch.
Curiosamente, Bandersnatch é o mesmo título de um videogame planejado, mas nunca lançado, por uma empresa chamada Imagine Software, que foi à falência no mesmo ano em que o filme se passa. Outro ponto interessante: o criador da série compara a sua película com Groundhog Day. Conhecido no Brasil como Feitiço do Tempo, a história estrelada por Bill Murray também é um exemplo considerado de narrativa multiforme.
Dessa maneira, fica evidente como a concepção do filme é baseada na ideia de sempre referenciar a si mesmo. É um filme decorrente da evolução narrativa atrelada à tecnologia sobre a produção de um produto de estrutura narrativa que só foi possível por conta dos avanços da computação moderna. É cíclico.
Videogames podem ser histórias multiformes, mas todas as histórias multiformes são videogames?
Considerando todas as características aqui apresentadas e a similaridades de Bandersnatch com as fantasias interativas da Telltale, deixamos em aberto a problemática: o que impede tal atração da Netflix ser chamada de jogo? Controversamente, não seria a hora de questionarmos o hábito de chamarmos de “videogames” alguns desses produtos que se utilizam da mesma estrutura que o filme de Black Mirror? É de se pensar.
Lúcio Amaral é jornalista e advogado pós-graduado em Direito e Processo Trabalhista. Certificado de Estudos Aprofundados em Psicanálise. Ganhador do II Prêmio de Rádio e Jornalismo em Saúde e Segurança do Trabalho, promovido pelo MPT em 2008.