O sucesso de um super-herói, seja nas HQs, cinemas ou videogames, depende do quanto ele desperta em todos o desejo de sê-lo. Com seu sexto sentido, super-força e a habilidade invejável de se balançar em teias, não é surpresa que todos queiram, em algum momento, ser o Homem-Aranha. O filme de animação Homem-Aranha no Aranhaverso, co-roteirizado por Phil Lord(Uma Aventura LEGO, outra animação sobre ser quem você quiser), compreende esse anseio, e todos são Aranhas agora, seja um homem branco de meia-idade, um adolescente negro, uma jovem roqueira, um robô de anime ou mesmo um porco falante.
O longa começa nos introduzindo àquela figura do Homem-Aranha que já conhecemos muito bem – bem demais, diria -, com Peter Parker ocupando o posto de melhor amigo da vizinhança. Reconhecendo a ciência que o público já tem de sua história de fundo, essa introdução ocorre da forma mais simplificada possível, sequer mencionando o tio Ben, e avançamos rapidamente para nosso protagonista da vez, Miles Morales (na voz de Shameik Moore, de The Get Down). Miles, um garoto birracial do Brooklyn, tem dificuldades em se adaptar ao ambiente escolar, onde se sente deslocado.
A apresentação do mundo de Miles é vivaz, levando em conta o ambiente multicultural e racial de Nova York e assumindo uma estilização única para o universo pessoal do herói, desde a música que escuta em seus fones até o detalhamento estético dos arredores, como grafites coloridos e tipografias específicas. Já a primeira conversa com o pai Jefferson (voz de Bryan Tyree Henry, de Atlanta), por si só, nos ajuda a entender a realidade daquele local, como quando comenta da rede de cafés gourmet que chegou ao bairro – uma referência à gentrificação, tema geralmente reservado a projetos mais densos como o excepcional Ponto Cego.
Assim que Miles dá de cara com Peter Parker em meio a um perigoso conflito com Wilson Fisk (Liev Schreiber), algo bastante inesperado ocorre e o rapaz se vê com uma grande responsabilidade em mãos: a de impedir que múltiplos universos paralelos cheguem a um fim. Mas por consequência de rupturas no tempo-espaço, ganha a ajuda não só de Peter Parker (um ótimo Jake Johnson) mas também de outros Aranhas: Mulher-Aranha aka Gwen Stacy (Hailee Steinfeld), Homem-Aranha Noir (Nicolas Cage!), SP//dr (um robô e uma garotinha anime com a voz de Kimiko Glenn) e Porco-Aranha (John Mulaney, hilário como sempre).
Quando ocorre essa colisão de diferentes tons e estilos visuais, insinuada desde os logotipos iniciais, Aranhaverso torna-se um deleite ainda maior do que já era para qualquer fã de animações, e aqui proporciona uma pomposa salada. Filmes como Uma Aventura LEGO e Detona Ralph, entre outros, já experimentaram esse choque estilístico com sucesso, mas aqui ele vai além – por falar nisso, fiquem até depois dos créditos para uma surpresa impagável. Não bastasse a impressionante junção de modelos 3D com traços 2D – método conhecido como cel-shading -, ver personagens de anime e um porquinho animado coexistirem é algo inusitado por si só e agrega à sensação de maravilhamento constante que o longa provoca.
Dessa maneira se cria um verdadeiro espetáculo sensorial, com a estética e fluidez de uma HQ imprimida sobre toda a ação. Por ser um filme de animação, não há limites para os realizadores na hora de criar situações deliciosamente implausíveis, como por exemplo a luta final entre os heróis e Fisk, na qual a colisão de dimensões rompe com as leis da física e resulta num campo de batalha colorido. A presença de recursos típicos de quadrinhos, como telas divididas e balões de fala, permite ainda uma objetividade que o live-action não seria capaz de fornecer – apenas Scott Pilgrim Contra o Mundo chegou perto desse frenesi. Vale notar também que a trilha magnética de Daniel Pemberton ajuda a criar e manter esse impulso dianteiro.
Por mergulhar no conceito de multiverso, Homem-Aranha no Aranhaverso é um filme de muitas referências, algumas mais obscuras que outras, além de ter uma forte carga metalinguística. Porém, diferente do que foi visto em Deadpool 2, essa atitude não é o objetivo, oferecendo uma trama satisfatória em seu núcleo. Os arcos dramáticos mais sólidos, é claro, ficam por conta de Miles Morales e Peter Parker, que aqui passam por altos e baixos impressionantes, mas todos os outros personagens ganham ao menos algum esboço de arco. Até o Rei do Crime, que poderia ser mais um vilão superficial à moda de alguns filmes de herói recente, tem sua história de fundo e motivações bem definidas, mesmo que de forma resumida.
Talvez o único problema do longa, a meu ver, seja sua tentativa de englobar mais do que consegue. Deste jeito, o enredo se apressa em seus minutos finais para amarrar algumas pontas soltas – o arco de Jefferson Davis e seu rancor com o Aranha se torna quase uma nota de rodapé. Porém, da mesma maneira, tem-se a convicção de se ter assistido a uma das melhores histórias de super-heróis concebidas recentemente para os cinemas, uma que no meio de todo seu caos colorido veste seu coração na manga e entrega personagens com os quais se quer passar mais tempo – Homem-Aranha Noir e Porco-Aranha serão xodós imediatos.
Homem-Aranha no Aranhaverso, além de cumprir com seu potencial de entretenimento, é capaz de realmente inspirar um forte sentimento altruísta que se via em falta nesta nova fase dos filmes de herói. Em um momento especial do longa, Miles questiona um vendedor de fantasias sobre o tamanho apertado de um traje do Homem-Aranha que está prestes a comprar. O vendedor, como de praxe, é interpretado por Stan Lee, e diz a Miles que o traje “sempre cabe”, apenas podendo levar algum tempo para lacear. Talvez seja a emoção de assistir Lee em uma de suas últimas pontas no cinema, mas persiste um sentimento quase ingênuo de que todos ainda podemos ser o Homem-Aranha. Se era esse o principal objetivo da animação, missão cumprida!
Fonte: Observatório do Cinema
Imagem: divulgação