Ainda a propósito do Natal, ocorreu-me entrevistar Bento XVI, o Papa emérito. É sabido que, desde que se retirou, o antecessor do Papa Francisco não faz declarações públicas mas, como esta entrevista lhe foi pedida na sua condição de teólogo, acedeu.
Foi aliás como Joseph Ratzinger que Bento XVI assinou ‘Jesus de Nazaré’, a sua principal obra cristológica, que responde cabalmente às dúvidas surgidas em relação à historicidade dos relatos evangélicos sobre a concepção e nascimento de Jesus Cristo.
– O que os evangelistas Mateus e Lucas, de forma diferente e com base em tradições diversas, referem sobre a concepção de Jesus, por obra do Espírito, no seio da Virgem Maria, é uma verdade histórica? Esta referência alude a um acontecimento real, ou é uma lenda piedosa que, a seu tempo, quer exprimir e interpretar o mistério de Jesus?
– “Procurou-se, principalmente a partir de Eduard Norden (+1941) e Martin Dibelius (+1947), fazer derivar a narração do nascimento virginal de Jesus da história das religiões e fez-se, aparentemente, uma particular descoberta nas narrativas sobre a geração e o nascimento dos faraós egípcios. Um segundo âmbito de ideias parecidas foi encontrado no judaísmo antigo – sempre no Egipto – em Filon de Alexandria (+ depois de 40 d.C.)”.
– Pode-se então supor que essas narrativas podem ter inspirado os evangelistas quando referem a concepção virginal de Jesus, o filho de Deus?
– “Duma leitura atenta resulta que nem no primeiro, nem no segundo caso temos um verdadeiro paralelismo com a narração do nascimento virginal de Jesus. O mesmo vale para textos provenientes do ambiente greco-romano, que se pensava poder citar como modelos pagãos da narração da concepção de Jesus por obra do Espírito Santo: a união entre Zeus e Alcmena, da qual teria nascido Hércules, a união entre Zeus e Danäe, da qual teria nascido Perseu, etc.”
– Há diferenças entre os relatos evangélicos e as narrativas mitológicas egípcias, judaicas e greco-romanas?
– “A diferença das condições é tão profunda que, de facto, não se pode falar de verdadeiros paralelos. Nas narrativas dos Evangelhos, continuam plenamente preservadas a unicidade do único Deus e a diferença infinita entre Deus e a criatura; não existe nenhuma confusão, nem há nenhum semideus. A Palavra criadora de Deus, sozinha, realiza algo novo. Jesus, nascido de Maria, é plenamente Deus, sem confusão e sem divisão, como especificará o Credo de Calcedónia no ano 451.”
– Mas, mesmo existindo essas diferenças, pode-se considerar que os relatos de Mateus e Lucas são também mitológicos?
– “As narrações em Mateus e Lucas não são formas mais desenvolvidas de mitos. Segundo a sua noção de fundo, estão solidamente colocadas na tradição bíblica de Deus Criador e Redentor. Mas, quanto ao seu conteúdo concreto, provêm da tradição familiar, são uma tradição transmitida que conserva o sucedido.”
– Ao afirmar que são relatos que conservam o sucedido, está a dar consistência factual à concepção virginal do filho de Maria. Mas, na actualidade, alguns clérigos católicos tendem a considerar que a concepção virginal de Cristo não deve ser entendida como uma realidade física, mas como uma mera alegoria, ou explicação metafórica, de uma realidade que, segundo esses autores, teria sido afinal a normal geração de um ser humano. Qual é, então, a explicação verdadeira da narrativa evangélica?
– “Eu consideraria como a única explicação verdadeira daquelas narrativas aquilo que Joachim Gnilka, retomando Gerhard Delling, exprime sobre a forma de pergunta: ‘Terá porventura o mistério do nascimento de Jesus (…) sido sobreposto ao Evangelho num segundo tempo, ou não se demonstrará antes que o mistério era conhecido, só que não se queria falar demasiado dele, nem torná-lo um acontecimento vulgar ao alcance da mão?’”
– Pode explicar melhor essa ideia? Porque motivo esse mistério, sendo conhecido pelos primeiros cristãos, foi inicialmente silenciado? Não seria mais lógico supor que foram os cristãos que inventaram posteriormente essa explicação, até para que assim decorresse mais evidente a natureza divina de Jesus Cristo? Ou seja, no princípio está um facto, que depois suscitou uma ideia; ou uma ideia, a que depois se fez corresponder um facto?
– “Parece-me normal que só depois da morte de Maria se pudesse tornar público o mistério e entrar na tradição comum do cristianismo primitivo; então podia também ser inserido no desenvolvimento da doutrina cristológica e relacionado com a confissão que reconhecia em Jesus o Cristo, o filho de Deus.
“E não no sentido de que de uma ideia se terá depois desenvolvido uma narração, transformando a ideia num facto, mas ao contrário: o acontecimento, um facto então dado a conhecer, tornava-se objecto de reflexão, à procura da sua compreensão.”
– Por conseguinte, o que dizemos no Credo – ‘Creio (…) em Jesus Cristo, seu (de Deus) único Filho, nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo; nasceu da Virgem Maria’ – é verdade?
– “A resposta, sem qualquer hesitação, é sim. Karl Barth fez notar que, na história de Jesus, há dois pontos nos quais o agir de Deus intervém directamente no mundo material: o seu nascimento da Virgem e a ressurreição do sepulcro, donde Jesus saiu e não sofreu a corrupção. Estes dois pontos são um escândalo para o espírito moderno. A Deus é concedido agir sobre as ideias e os pensamentos, na esfera espiritual, mas não sobre a matéria. Isto perturba; não é ali o seu lugar. Mas é precisamente disso que se trata: de que Deus é Deus e não se move apenas no mundo das ideias. Neste sentido, em ambos os pontos, trata-se precisamente de Deus ser Deus. Está em jogo a questão: também Lhe pertence a matéria?
“Naturalmente, não se pode atribuir a Deus coisas insensatas, ou não razoáveis, ou que estejam em contraste com a sua criação. Ora, aqui não se trata de algo não razoável ou contraditório, mas precisamente de algo positivo: do poder criador de Deus, que abraça todo o ser. Por isso, estes dois pontos – o parto virginal e a ressurreição real do túmulo – são verdadeiro critério da fé. Se Deus não tem poder também sobre a matéria, então ele não é Deus. Mas Ele possui esse poder e, com a concepção e a ressurreição de Jesus Cristo, inaugurou uma nova criação; assim, enquanto Criador, Ele é também o nosso Redentor. Por isso, a concepção e o nascimento de Jesus da Virgem Maria são elementos fundamentais da nossa fé e um luminoso sinal de esperança.”
NOTA. – As respostas atribuídas a Joseph Ratzinger são, ipsis verbis, palavras suas, segundo o livro Jesus de Nazaré, A Infância de Jesus, Principia, 1ª edição, Parede 2012, págs. 47-52.
Crédito da Foto: Arquivo CN/cancaonova.com
Fonte: https://observador.pt